sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Entre é um lugar de estar entre

Entre um espaço fixo e outro, existe um entre. E esse entre é o que é necessário para que dois espaços fixos, por exemplo, aconteçam como dois espaços distintos. Espaços que podem até se relacionar, mas que são individualmente dois espaços diferentes, com características próprias.

O entre é um lugar onde não se fixa. É um lugar de transição. É o lugar que está entre a chegada e a saída, entre uma mudança e outra. O entre, afinal, é um entre. E estar entre é, no final das contas, algo que não tem fim. Estar entre é estar entre e pronto. O entre é o entre.

Na encenação Um lugar para não ficar, de Dyego Stefann, Fátima Muniz e Poeta Rasta, com orientação de Fran Teixeira, o entre tem uma espécie de foco sobre ele. Ele está em evidência. Uma linha no meio, entre duas extremidades, demarca o seu território. E, entre esse lugar de estar entre, está o público, que observa os dois espaços fixos existentes, cada um em uma extremidade, e o entre entre esses dois espaços. Nesses espaços, existem duas figuras fixas, que parecem anunciar uma possível relação a se estabelecer daqui a pouco, principalmente pelo material que elas têm com elas: de um lado, um homem com um palito de dente e, do outro, uma mulher com balões. E o acontecimento, nesse tempo, se torna a expectativa que fica no que virá, mas que nunca vem.

Um som pontual, um bip seguido de outro, com um silêncio no meio, faz com que um bip só seja um bip por haver, entre um bip e outro, um entre de silêncio. E entre um bip e outro, pode ser perceptível a passagem do tempo. E é essa a atmosfera do lugar. Um lugar de permanência em meio a passagem de tempo.

Até que no entre, surge uma figura. Uma figura também transitória, que vai de uma ponta a outra e faz mover o que parecia imóvel. Indo de um espaço fixo a outro, transformando o próprio corpo e transformando os dois espaços. E um outro tipo de relação vai se estabelecendo entre os dois lugares, sempre possibilitado pelo entre, sempre ligados por esse entre, sempre utilizando o entre como lugar de encontro, como lugar onde é possível levar e trazer algo.

A ideia de entre parece óbvia. Porque o entre é óbvio. O entre sempre será óbvio, porque sempre haverá o entre. No entanto, construir uma obra a partir da ideia de colocar o entre como o lugar principal, possibilita uma experiência diferente diante do acontecimento. Sendo o mais importante não o fato acontecido, mas o ato de estar acontecendo. E estar acontecendo é uma ação que é possibilitada pela existência do entre. Encenar isso é, de alguma forma, fazer do teatro o lugar da ação. Como ele sempre é. Porque o teatro é um lugar de ação. Mas, a partir desse olhar possibilitado pelo entre, é dado ao teatro um lugar principal dessa ação de acontecer. E a ação se torna protagonista na linguagem teatral. Nesse caso, a ação pura, simples, por ela mesma.

Ao final, os intérpretes saem de seus lugares e ocupam uma sala. Eles entram. E lá eles permanecem fixos. O lugar entre eles não é mais demarcado. Apesar de ainda existir um entre, não é mais dado a ele o mesmo posicionamento de antes, a mesma importância, apesar de ele ser sempre importante. E essa falta de entre ocasiona a falta de transição entre as ações. E então, entre eles não acontece mais nada. É como se o entre, apesar de existir, não existisse mais. E então a palavra entre pode ganhar um novo significado: o do verbo entrar. Entrar e estar entre eles. Ou não. Depende da escolha do público. Que também pode escolher o tempo que ficará ainda com a performance. Porque ela só acaba no momento em que não existir mais quem fique. E aqui, nesse segundo momento, quem ganha importância é a ideia de permanência. Ou não.

(Foto: Toni Benvenuti)

domingo, 3 de novembro de 2013

Carol Anne vai ou não vai para a luz?


O que mudou de 1982 até agora? Como estar diante de uma obra cinematográfica estreada em 1982, repleta de efeitos especiais que dificilmente seriam usados nos dias de hoje se fossem para proporcionar ao espectador uma experiência parecida com a que as pessoas de 1982 tiveram?

O que é uma obra datada? Como dizer que algo é ou não é datado? Como saber que o que eu produzo hoje será ou não será datado? Isso é uma preocupação pertinente?

Existe uma frase atribuída à Elis Regina que diz o seguinte: "A longevidade do disco é uma coisa que pode servir de testemunha de defesa, como também pode lascar uma condenação histórica". Se trocarmos a palavra disco por filme, provavelmente também teremos as mesmas duas possibilidades: defesa ou condenação. Diversos aspectos podem ser encontrados de maneiras diferentes numa obra que atravessa o tempo. Podemos questionar éticas e estéticas, e até mesmo esses questionamentos podem se modificar de pessoa para pessoa. O fato é que a experiência de estar frente a um filme de 1982 em 1982 e agora em 2013 são experiências completamente diferentes. Isso mostra o quanto uma obra, mesmo fechada, se modifica, não exatamente por ela mesma, mas pela sua presença nas passagens de tempo. Ela sempre estará em modificação enquanto existir, porque tudo ao redor se modifica. Os públicos mudam, as culturas mudam, as tendências mudam, as técnicas mudam, as tecnologias mudam, as ideologias mudam e assim por diante.

Quem não viu Poltergeist – o fenômeno no seu período de estreia, não vai poder assistir, nos dias de hoje, ao filme do mesmo modo em que ele foi assistido naquele tempo. Portanto, o público atual não deverá ter a mesma recepção, bem como a mesma expectativa do público daquela época. A experiência de, por exemplo, rir de um efeito especial que hoje em dia não faz mais o mesmo efeito aterrorizante que fazia antes pode não ser culpa da obra, mas pode nos apontar o quanto estamos cristalizados na ideia de que Poltergeist é um filme de terror. Novamente eu pergunto: o que é uma obra datada? O fato de algo não funcionar hoje em dia do mesmo modo que funcionou tempos atrás é o que caracteriza uma obra como datada? Talvez não seja o espectador que esteja datado? O que é um espectador datado? E o que caracteriza, afinal, um filme de terror? Quem inventou o termo e como nos foi aplicado o seu modo de usar? Como isso em nós?

Por conta dessas questões, além de outras, percebo que o filme de Tobe Hooper – e, segundo lendas, também dirigido em sua maior parte pelo seu produtor Steven Spielberg –, com roteiro de Mark Victor, Matthew F. Leonetti, Michael Grais e Steven Spielberg, ainda continua atual. Porque soube se modificar e, ainda sim, não deixar de apontar o quanto estamos influenciados pelas estruturas de poder que nos rodeia.

O filme começa com o hino nacional americano. Em seguida mostra o personagem de Craig T. Nelson, o pai de família Steve Freeling, dormindo na frente da TV. E então a TV sai do ar e Heather O'Rourke, a pequena Carol Anne, faz seu primeiro contato com ela. A partir daí, diversos fenômenos sobrenaturais começam a acontecer, até o dia em que Carol Anne é sugada pelo seu armário e levada a um lugar aparentemente imaterial, onde só a televisão serve como meio de comunicação entre ela e a família.

Então a perfeita família americana, de um pai que tem emprego fixo e lê a biografia de Ronald Reagan, se vê completamente ameaçada em sua estrutura. A tranquilidade da casa não é mais intimidada por uma simples desavença entre vizinhos tipicamente americana, mas por conta de outros tipos de ataque, vindos do além-mundo.

A presença da televisão é bastante forte, inclusive nos cortes abruptos que ocorrem no decorrer do filme, que muito lembram mudanças de um canal para outro. Além disso, são exibidos nas TVs do filme, bem como no próprio filme, símbolos americanos, alguns bastante evidentes e outros menos. Há também a presença da câmera como objeto de estudo da equipe de paranormais de Beatrice Straight e o modo como a paranormalidade é associada ao sensacionalismo midiático – por exemplo, quando a personagem de Zelda Rubinstein se coloca diante da câmera dos paranormais como uma celebridade. A forte presença da propaganda de produtos durante todo o filme também é algo que parece produzir a possibilidade da alienação do espectador de televisão e do espectador do filme Poltergeist. Mas nada me produziu mais questão que a cena em que Carol Anne está assistindo à TV fora do ar e sua mãe, Diane, interpretada por JoBeth Williams – que está muito bem no filme –, diz que aquilo faz mal à visão da filha e muda o canal para outro, onde estão passando imagens de guerra.

Poltergeist, afinal, foi feito como um filme propagandista ou anti-propagandista do modo de vida americano? Ou as duas coisas? Ou nenhuma delas?

Quem ataca, é a televisão? É o próprio sonho americano, alimentado pela mídia americana e pelo governo americano, que se volta contra si mesmo? É a mania de perseguição americana – e é por isso que o modo que o horror acontece no filme é tão infantilizado? Ou é porque a perfeição americana não poderia deixar de ser ressaltada, mesmo num filme onde ela é colocada em questão? E que esse modelo de vida é tão importante que não deve ser deixado, apesar de tudo? Afinal, ao final de tudo é a família que vence.

Mas é isso mesmo? Ao final de tudo, é a família que vence realmente?

Seja como for, o fato é que o tal modelo de vida americano e a sua perfeição são colocados fora de ordem. E isso serviu, em 1982, como um produto cinematográfico de entretenimento para toda a família americana, cheia do medo do comunismo, em plena Guerra fria. Mas, e nos dias de hoje? O filme nos serve como o quê? 

Hoje em dia, Poltergeist é um filme propagandista ou anti-propagandista do modo de vida americano? Ou as duas coisas? Ou nenhuma delas?

A obra parece se mostrar dúbia, não sei se durante todo esse tempo. De alguma forma, essa dubiedade enriquece o seu entorno, possibilitando, no mínimo, dois pontos de vista extremos e milhares de discussões acerca desses dois. E isso pode também, enquanto a obra durar, "servir de testemunha de defesa, como também pode lascar uma condenação histórica". Milhares de vezes. Enquanto a obra durar.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Que é isso, novinha? Que é isso?

Ser feminista. E colocar em prática o feminismo. Na cena. Na rua. No meio da rua ou na calçada. E, em cena na rua, ser manifesto. Optar por um modo de falar discursivo. Gritar no mega fone. Falar aos quatro cantos. Ser mulher. Estar mulher. Ser na linha de frente e estar na faixa de pedestres. Ser efêmera e assumir isso. E, ao mesmo tempo, continuar no mesmo lugar. 

Mulheres paradas – é gasolina, parei o trânsito, é diet: sou 2013, da Companhia Ponto, é uma obra que muda de nome a cada ano. E, a cada ano que passa, a violência contra a mulher continua existindo. Desde antes de o espetáculo existir até o ano de 2013. A primeira vez que eu assisti, o título era Mulheres paradas – é gasolina, parei o trânsito, é diet: sou 2010. Entre esse ano e o ano de 2012,estiveram no elenco Maurileni Moreira, Tatiana Valente, Tayana Tavares, Cassia Albano, Eduarda Talicy, Jéssica Cruz e Yasmin Elica. Hoje, em 2013, as mulheres são, além de Maurileni, Tatiana e Tayana, Danielly Oliveira, Mariana Elâni e Nataly Barbosa.

Mulheres paradas foi 2010, foi 2011, foi 2012 e agora está sendo 2013. Tempos e espaços mudaram, corpos mudaram, cenas mudaram, mas a estrutura continuou a mesma. Porque, apesar de já ter passado esse tempo de três anos, as mesmas questões são pertinentes até hoje. É que o machismo de todo dia é o mesmo, e todos os dias alguém é vítima dele. No entanto, a sua forma de acontecer se modifica. O machismo ganha novas formas em sua tradição agressiva. As músicas mudam, as situações são outras e até algumas piadinhas tão batidas e costumeiras também modificam algo em sua estrutura. Então, as mulheres paradas, que caminharam todo esse tempo, modificam, adaptam e recriam, para uma mesma estrutura, cenas novas. E assim elas são passageiras para continuarem permanentes.

E como ainda é preciso dizer tudo isso. É possível enxergar a necessidade dessa obra através de como a rua comporta as Mulheres paradas. É possível perceber nos rosto das pessoas o quanto ainda é estranho ouvir mulheres falando jeito que elas falam. E é cruel o desmascaramento disso diante de todos aqueles que estão lá como participantes ou espectadores atentos ou curiosos ou escondidos. É cruel o quanto tudo, na boca dessas mulheres, acusa todo mundo o tempo todo, do início ao fim e até depois do fim. O quanto ninguém sai livre diante da voz de protesto dessas mulheres que gritam pela liberdade. Elas mal cabem nesse espaço da rua que às vezes parece querer engoli-las, por mais que elas não deixem que isso aconteça. E aí está o maior risco de apresentar algo do tipo. Elas estão falando sobre o machismo e, apesar disso, ataques misóginos não deixam de acontecer. Vem dos pedestres, dos carros, de todo lugar. E elas correm, sim, o risco de serem sucumbidas. E elas estão, sim, sendo agredidas em cena. Naquele lugar. Naquele minuto. E todos que estão lá são, sim, testemunhas, vítimas ou cúmplices.

A experiência proporcionada por esse tipo de acontecimento que a cena provoca é uma ferramenta que não deve ser nunca desperdiçada. Não deve nunca passar a olhos não vistos dos espectadores e, muito menos, das intérpretes. E mesmo que todos os espectadores vejam, é necessário que, os que não viram, vejam. Para isso estão as intérpretes dessa obra: para, além de reafirmar o que se sabe, mostrar o ainda não visto. É preciso reafirmar o tempo todo, em cena, todas as questões. Nunca é demais. Nunca se esgota. 

A maior justificativa para o acontecimento dessa obra é que na rua realmente se acusam todas as coisas. É a prova viva do que acontece. É um flagrante. De verdade. Que escapa. Não é ficção. E, no dia que a rua não acusar mais, vai ser porque, provavelmente, as questões serão outras. 

Ser cena e estar em cena não seria suficiente diante de tudo o que a rua exibe afinal. É lógico que ao ver Mulheres paradas nós estamos diante de uma obra cênica. Sem dúvida. Foi pensada como obra e existe enquanto obra. Mas ultrapassa os limites da cena e se configura como uma arma de protesto também. O modo de estar nessa cena-protesto é múltiplo. As intérpretes são dançarinas e atrizes, são performers, têm suas marcações, têm seus textos preparados, no entanto assumem um corpo manifestante. E, dessa maneira, assumem as estratégias de tal corpo, se modificando de acordo com as necessidades da guerra vigente. Isso está no modo como a dramaturgia se dá, está no modo como o texto está escrito e falado em cena e está no modo em que elas se relacionam com o tempo e o espaço. Assim, a performance se dá também como luta constante, mesmo em cenas onde o protesto não é evidentemente visível.

De outro jeito, como seria Mulheres paradas? Elas seriam?

Há ainda quem pense que feminismo é ser anti-homem. A meu ver, isso é apenas mais um uma prova de que o machismo existe.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Uma criada


Os primeiros minutos do filme mostram o aniversário de Raquel organizado pelos seus patrões. Um clima de descontração aparentemente forçado, uma demonstração de carinho forçada, quase um pedido de desculpa fajuto. E Raquel nos mostra o quanto ela é amarga. E isso nos revolta. Depois, o filme vai para outro caminho muito diferente do que ele apontou de início. Nós enxergamos outros lados. E depois Raquel nos irrita, e nós temos raiva dela realmente. Depois, como se nós fossemos realmente superiores, nós achamos que temos o direito de ter pena dela. E então, depois, pode ser que nós queiramos realmente entendê-la e, ao invés de julgá-la, estarmos com ela.

O filme é A criada, de 2009, dirigido por Sebastián Silva e com roteiro dele e de Pedro Peirano. É um filme muito simples, sem grandes artifícios, baseado na relação da empregada doméstica Raquel, interpretado por Catalina Saavedra, com a família da casa onde ela trabalha. As situações são repetitivas, tudo parece ser muito lento, os diálogos são banais: são coisas do dia-a-dia de uma casa: e é essa a vida de Raquel. E a vida dela é realmente apenas isso.

O corpo criado por Catalina para a sua personagem é extremamente retraído. O seu olhar é fugitivo. As ações dela não são as de uma mulher livre, mas as de alguém automatizado. Ela mal sorri. Ela mal pensa no próprio corpo, na própria existência, e então ela é o que ela é. O minucioso trabalho de atriz de Catalina é surpreendente. É, provavelmente, a principal centelha que mantém o filme aceso do início até o fim.

Raquel é uma mulher comum. Talvez, de tão comum, seja estranha. Uma empregada doméstica comandada pela sua rotina. Uma mulher sem corte de cabelo. Uma figura estranha e incômoda. Que dói. Do jeito que dói Macabéa, de Clarice Lispector, em seu livro A hora de estrela. Porque nos acusa. Porque nos encosta na parede. Porque nos pergunta o porquê da estranheza dela.

Mas então o corpo, a partir de certo momento, ganha um novo olhar sobre ele e, com isso, uma certa importância. Perceber isso é, de certa forma, libertador. E aponta Sebastián Silva como um realizador sensível e bonito. Um apontador de caminhos que faz o trajeto desembocar para outro lado e que, ao final, transforma o desfecho em um lugar de recomeço.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O caminhar para trás de Agnès me faz andar para frente

Essa ideia de memória como uma simples bagagem ou lembrança de algo que já passou é pura bobagem. Se a memória é memória, é justamente porque ela está mais presente do que nunca. Que, se fosse esquecimento, aí sim seria fato passado e pronto. Mas não. Se é memória é porque acontece agora, nesse exato momento. É tradição. É retrato sempre visto. É algo que permanece e que, ainda sim, está em estado de modificação, como tudo que é vivo.

Memória é como Cinema. É encontrar um filme e assistir tudo de novo, com outra cabeça, e se relacionar com aquilo tudo novamente. E essa relação vai ser inevitavelmente nova, porque tudo é novo o tempo todo.

As praias de Agnès, um filme de Agnès Varda de 2009, o último dela até agora, foi primeiro dela que eu pude ver na minha vida. E quando eu vejo uma velhinha andando de costas, como eu pude ver nesse filme, eu me surpreendo pelo risco que ela ainda se põe. Não por simplesmente estar andando de costas e ser uma velhinha, mas por se colocar no lugar de quem ainda tem o que descobrir. Essa velhinha é a própria Agnès. E esse filme é a sua autobiografia. E ela anda como se ir à frente fosse voltar. Ou não: como se andar à frente e de costas fosse encontrar paisagens novas em lugares já conhecidos, parecendo sempre estar disposta a um novo acidente, uma nova revelação, um novo documento.

Sim, é claro que ela poderia andar da mesma maneira vida toda, na mesma direção e com os mesmos passos e, ainda sim, ela estaria andando de maneira nova. Os músculos mudam, os ossos mudam; o mundo muda e nós mudamos no mundo também. Mas há a possibilidade também de exercitar o olhar de outra maneira também nova. E assim surgem novos pontos de vista, uma nova investigação de movimento, uma outra possibilidade de criar, um cinema novo, uma nova Nouvelle Vague. Não que exista essa pretensão na artista. Eu não sei. Mas essa renovação não deixa de ser um acontecimento nessa revisão de tudo o que ela vive. 

Sim. Tudo pode estar renovado. Tudo vai ser renovado a partir desse momento. E assim ela me convida a lançar um novo olhar para o mundo. Um novo olhar sobre o mundo. Um novo olhar acerca do mundo. Um novo olhar no mundo. E eu aceito esse convite. E percebo esse mundo dela, que também é meu. E encontro o meu mundo, que também é dela. E experimento caminhar, conhecer, ter aulas magníficas de fotografia, de composição, de tudo. Divagar sobre as incertezas. Reconstituir o que a história ensina. Perceber a vida como algo possível. E perceber a arte como algo possível. Observar o tempo. Sentir saudades imensas de tudo aquilo que eu ando vivendo desde o dia em que eu nasci. E estar aberto a, assim como Agnès, ser sempre jovem. Porque sim, é possível. É simples. É como estar aberto a um encontro. Mas um encontro realmente. Esta é uma possibilidade muito boa para criar e para viver. É uma dica irreparável. E não há como conjugar se não for vivendo.


segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Uma cadeira é uma cadeira?


Uma cadeira é uma cadeira. Uma cadeira em cena é uma cadeira em cena. E uma cadeira em cena é uma cadeira? Sim, pode ser. Mas pode também não ser. Mas, mesmo não sendo, será uma cadeira. Mas, para além de cadeira, pode assumir outros papéis, desempenhar outras funções que não as de uma cadeira em condições normais de uma cadeira.

Uma cadeira pode fugir à regra. Uma cadeira pode ir muito além da sua condição utilitária de cadeira. Uma cadeira pode negar a moderna ideia de funcionalismo. E então uma cadeira poderá ser um móbile. Uma cadeira pode, sim, ser colocada na condição de um móbile. Por que não? Um objeto que só faz sentido em movimento. Ou mais que isso: uma cadeira pode ser um objeto que só é vivo em relação com alguém. E isso pode estar em cena. Uma cadeira como um objeto que pode ser outros objetos sem deixar de ser o que ele é. Uma cadeira não como um elemento usual, mas uma cadeira como um instrumento múltiplo, e fugindo também à ideia de ser uma escada ou um trampolim para números. Mais que isso: uma cadeira pode ser parte de uma relação. E não cabe à cadeira decidir isso. Mas ela pode estar em relação mesmo assim. E é isso o que acontece no espetáculo A cadeirinha e eu, de Silvia Moura. Um espetáculo que acontece desde 1994 e que não é só de Silvia Moura, mas que é da cadeirinha também. Sim, porque, além de tudo, uma cadeira, sendo ou não uma cadeira, não é uma cadeirinha. E uma cadeirinha é uma cadeirinha. Uma cadeirinha não é e nunca será uma cadeira: será sempre uma cadeirinha, mesmo quando não for uma cadeirinha. É importante deixar isso claro: que a cadeira de A cadeirinha e eu não é uma cadeira, é uma cadeirinha.

É realmente difícil identificar esse trabalho com um solo. A cadeirinha não é utilizada, a cadeirinha é colocada na condição também de intérprete. E assim as duas contracenam. Quem vai dizer que não? As duas existem. E as duas, em relação, se relacionam com o público de maneira direta, sem fingimentos. Em estado de apresentação e não de representação. Elas não querem enganar ninguém. Uma delas já tem cabelos brancos e a outra tem as madeiras frágeis, mas nem por isso elas deixam de serem crianças. E elas são. Assim: sem fingimentos. Todo mundo sabe que elas são adultas. Mas quem é quem vai dizer que é mentira que elas são crianças se todos ali são cúmplices? Quem vai desmentir tudo se a relação que elas criam com a gente, do público, é a de uma brincadeira? E todos nós queremos brincar. O que nós mais queremos ali, com elas duas, é brincar. A brincadeira é eterna. É tradicional. É intrínseca a todas as idades. E é por isso que esse espetáculo ainda é vivo apesar de tanto tempo. De uma estrutura super simples que é pautada na pura e simples brincadeira, no faz-de-conta. E é mesmo um faz-de-conta. Ninguém ali se ilude. Todos sabem que é uma brincadeira. Todos sabem que é um espetáculo. Todos fazem de conta. E é através dessa sinceridade que é possível chegar e falar, se comunicar.

(É preciso abrir um parêntese aqui para dizer que eu não vou colocar que "A cadeirinha e eu tem uma estrutura que ainda funciona", porque eu quero fugir desse funcionalismo que às vezes insiste em estar presente em praticamente tudo. Porque a gente foi realmente condicionado a isso de alguma maneira. Até na arte. Então eu não quero falar desse modo aqui, ainda mais sobre uma obra que a própria cadeirinha, enquanto intérprete, dança há sei lá quantos anos. Eu a ofenderia se eu falasse dela e da obra que ela participa de modo funcional, justamente por ela ser o que ela é: um sujeito que nega ser sujeito; algo que não é, mas que está em estado de sempre poder ser. Porque nós sabemos que, para ser intérprete de A cadeirinha e eu, a cadeirinha precisou não ser nada funcional. Isso não é uma crítica minha ao modernismo e ao seu funcionalismo, é uma opção de escrita nesse momento. Porque às vezes é preciso fugir desses parâmetros utilitários que nem sempre são por opção, mas por falta de espaço de livre-pensamento. E saber que em 1994 uma cadeirinha fugiu a tudo isso, à frente do seu tempo e às pessoas do seu tempo, é surpreendente, mesmo em um espetáculo com começo, meio e fim. Porque um espetáculo com começo, meio e fim não é, necessariamente, uma coisa ruim. Isso se for por opção e não por enclausuramento. – Vale ressaltar que também pode ser muito ruim essa necessidade de profanação o tempo todo. Mesmo que isso seja entendível, por conta do aprisionamento gerado ao longo do tempo, essa necessidade acaba sendo, de alguma maneira, também funcional. – Então, A cadeirinha e eu, do ponto de vista da opção por ser linear, sendo uma obra que nega o funcionalismo, também se adéqua a ele; para contar, de maneira simples, a história simples de gente comum; numa gramática simples, desprovida de ostentação técnica ou visual, com ações simplificadas, proporcionando a documentação de algo que ainda é pertinente desde 1994 e que, provavelmente, vai ser ainda durante muito tempo. Temos, através da dimensão do ciclo, no senso comum da ideia cíclica, uma obra que se aproxima do universo de toda e qualquer pessoa, afirmando, assim – e também, desse modo, denunciando –,  que, justamente por sermos filhos desse funcionalismo moderno, ainda é preciso negar algumas coisas de dentro para fora e não de fora para dentro, de maneira tão radical. E assim A cadeirinha e eu tem vida longa, se apresentando em todos os lugares e para todos os tipos de público, sendo uma obra que, para ser democrática, precisa estar despida de vaidades e até envolvida de uma certa precariedade e crueza que já são próprias de sua estrutura. Uma ideia de democracia e acesso através de um certo despojamento estético. E, ainda sim, isso não deixará nunca de ser experimental do ponto de vista da linguagem. E é bom que A cadeirinha exista. Porque é preciso. Não do ponto de vista do que é, de fato, preciso. Porque é necessária. Não do ponto de vista do que é, de fato, necessário. Porque é atualíssima. Justamente por ser da maneira que é. Mesmo sendo desde 1994. Porque, ainda hoje, a arte ainda é vista supérflua diante de tanta escassez. Ainda é preciso o feijão e o arroz, e essa fome de comida é que é realmente funcional. E é para combater esse tipo de funcionalismo que é preciso ser preciso. E é bom que exista essa obra e alguém como Silvia Moura que ainda a faça. E Silvia Moura não deixa de ser para as artes cênicas o que Rogério Sganzerla foi para o cinema; e quando ele dizia "somos antiestéticos para sermos éticos", ele talvez não imaginasse que existia alguém como ela.)

Mas se querem saber: A cadeirinha e eu ainda é uma obra que coloca o mundo em questão. É uma obra que coloca a dança em questão. É uma obra que coloca o teatro em questão. É uma obra que coloca a ideia de dramaturgia em questão. É uma obra que coloca todos os conceitualismos em questão. É uma obra que coloca o funcionalismo e a crítica a esse funcionalismo em questão. É uma obra que coloca a mim mesmo em questão. E coloca tudo o que eu escrevi até agora também em questão. (A cadeirinha me diz que é preciso ser paradoxal.) E coloca a vida em questão. E coloca a condição de obra de arte em questão. E é também uma obra que coloca a relação em questão. E as relações todas entre público e obra em questão. Que coloca a ideia de simplicidade e simploriedade em questão. Que coloca em questão o que produzimos e para quem produzimos; e também o que não produzimos e para quem deixamos de produzir. E coloca em questão também tudo o que é novo assim como tudo o que é ultrapassado.

E assim A cadeirinha é mais atual que nunca. E a cada dia que passa se torna mais questionadora de tudo. Como uma pessoa que vai amadurecendo e tomando consciência das coisas que existem no mundo.

Não se trata mais de um espetáculo que aborda o universo feminino e o ciclo da vida, vai além disso. E, da mesma maneira que o objeto cadeirinha foge à regra, que o objeto cadeirinha vai além da sua condição utilitária, que o objeto cadeirinha nega a moderna ideia de funcionalismo, a história contada no espetáculo A cadeirinha e eu foge à regra de ser uma história de gente normal. É uma história que vai muito além da sua condição utilitária de ser uma história de gente normal e nega a moderna ideia de funcionalismo da vida de gente normal  mesmo que essa história seja a história de gente normal. Ela vai além e também nos coloca na condição de se identificar com aquilo que é, apesar da nossa diferença entre si, a nossa própria história. Porque, apesar de tudo, todos nós somos gente normal. A cadeirinha ainda é uma cadeirinha. A cadeirinha é universal.

(Na última cena do espetáculo, Silvia Moura cai no chão como uma morta. E a cadeirinha cai junto dela. Parece que a cadeirinha é algo que todos nós temos também. A cadeirinha é universal.)

A cadeirinha ainda é uma cadeirinha. A cadeirinha é universal.