quinta-feira, 17 de abril de 2014

Nem yuppies e nem hippies: vagabundos

(Foto: Alex Hermes)

Eu fui surpreendido por um relato. Era um conhecido que perguntava que país era este. Ele perguntou isso e, em seguida, contou uma história: é que tinham assaltado a mãe dele há pouquíssimo tempo. O assaltante era um homem que estava armado. E ele levou o carro dela. Isso bem na porta de casa.

Algumas pessoas, ao se depararem com um relato desses, poderiam muito bem dizer que o ladrão se trata de um vagabundo. Como é de costume dizer ou ouvir. Muita gente fala assim. Muita gente por aqui. Nesse país que é sempre perguntado a ele mesmo o que ele é.

E essa pergunta, de que país é este, é facilmente identificada como uma referência à música Que país é este, do compositor Renato Russo, grande sucesso nos anos 80 gravado pela sua banda Legião urbana.

E que país é este, afinal? E por quem é inventado este país?

A peça Vagabundos, dirigida por Andréia Pires, parece fazer essa pergunta. No elenco, participam vinte e quatro atores-bailarinos-performers vagabundos e criadores. Muita gente lançando perguntas sobre o país em que vivemos. Sobre a cidade em que habitamos. Sobre o mundo. Sobre estar no mundo. Sobre os lugares que a gente anda assumindo por aí como juventude transformadora ou não de um país que sempre se pergunta para ele mesmo o que ele é. 

E tudo isso em uma peça absolutamente vagabunda. Suja. Feia. Maltrapilha. Desordenada. Confusa. Mal resolvida. Mal comportada. Mal colocada. Reivindicadora. E ao mesmo tempo pop. Tamanha é a sua vagabundagem.

E tudo isso como? Levantando as diversas hipóteses sobre toda uma vagabundagem operante neste país. Este país que – eu repito – sempre se pergunta para ele mesmo o que ele é.

Então Vagabundos também pergunta o que Vagabundos é. E assim Vagabundos é uma peça suja, porque não poderia ser diferente. Feia, porque não cabe a ela ser bonita. Maltrapilha, porque se veste terrivelmente. Desordenada, porque a sua ordem é estabelecida através da desordem e isso vai se evidenciando cada vez mais ao decorrer da peça. Confusa, porque as informações são muitas e as vozes se confundem de tantas que elas são. Mal resolvida, porque é uma peça que nunca se fecha e que nunca se completa. Mal comportada, porque é marginal e porque coloca a cena num lugar de questionar o cumprimento da cartilha de uma boa peça de teatro ou dança – inclusive perguntando se ela, como peça, é teatro ou dança e se definir isso, no final das contas, é realmente importante. Mal colocada, porque não estabelece apenas uma visão. Reivindicadora, porque não só é política, mas se assume como tal e escancara isso. E ao mesmo tempo pop, porque também utiliza referências pops em sua composição, tanto no que há de mais tendencioso nas artes quanto no dia-a-dia daquelas pessoas que compõe aquele trabalho. Tamanha é a sua vagabundagem.

Mas quem são esses vagabundos? Vagabundo é o quê? Vagabundo é quem? Vagabundo é quem leva uma vida sem trabalho e vadia? Ou é também vagabunda aquela bijuteria que perde a cor dois dias depois de usada pela primeira vez?

Quais sentidos a gente encontra nesse adjetivo? Em quais sentidos nós nos encontramos? E nesses sentidos, quais os motivos? Por que nós nos chamamos assim? Por que nós chamamos os outros assim? Por que nós dizemos o nosso governo assim? Por que nós dizemos os nossos governantes assim? Quem merece o status de vagabundo? Vagabundo é um título bom ou um título ruim no final das contas? Ou, no final das contas, bom ou ruim não cabem ao vagabundo?

Sem posição definida diante dos fatos exibidos em cena, Vagabundos exibe muitas opiniões ou nenhuma. E nós, como eles que estão em cena, cada um com sua opinião latente, também vamos depositando ali os fatos que vemos, vivemos e lembramos. E assumimos ou não as nossas posições. Diversas. Muitas vezes vagabundas. Muitas vezes bem informadas ou alienadas. Afinal, todos nós estamos sujeitos a sermos capturados pelo sistema. Tanto nós, espectadores, quanto quem participa da feitura da peça. E assim continuamos seguindo sem certeza. Construindo um país desde 1500. Construindo um país que é sempre perguntado a ele mesmo o que ele é. Às vezes sem muita preocupação ou embasamento. Às vezes reproduzindo algum discurso de jornal ou de revista. Ou de algum político querido nosso. Ou daquilo que ouvimos em sala de aula ou na televisão. Ou mesmo não opinando em nada. Mas talvez assumindo a nossa postura de Macunaíma. O anti-herói preguiçoso que dá nome ao livro de Mário de Andrade. Capaz de se transformar e de assumir tantas facetas. E, como bons macunaímicos que somos, transitando como vagabundos por essas opiniões todas. E transitando nas diversas outras qualidades que a palavra vagabundo tem. 

Ao sair do teatro, é possível perceber que está lançado um diagnóstico. Ou mesmo vários diagnósticos. E então? O que nós fazemos com eles? O que nós podemos fazer? Como ganhamos força para essas vozes que gritam tanta coisa por aí, sendo tantas observações ou sendo tantas reclamações? É possível unir essas vozes? É possível unir tanta gente para tantas causas que nos agrupam e, ao mesmo tempo, nos dissipam?

Como participar de tamanha violência com uma violência ainda maior e capaz de nos colocar firmes um ao lado do outro para enfrentarmos tantas questões juntos? Diante da quebra dessa cegueira e dessa surdez que insistimos em ter, como ainda nos mantemos imóveis e inativos?

E que país é este, afinal?

Os diversos públicos, nos shows em que essa música é tocada, geralmente respondem que este país "é a porra do Brasil". Sendo o mais seco possível, a reposta pode ser, de repente, que este país somos nós. Porque, afinal, nós não somos mesmo este país? 

Sim. Nós somos este país.

Ou, se for para ser poético, podemos responder a música do Renato Russo com outra canção. Então a resposta pode ser, de repente, uma música do Cazuza e do Frejat. Uma música que, de repente, fale sobre esse estado de se perder e não tomar iniciativa diante de tantas coisas que, por si só, gritam tanto. 

Sim. Este país é um Poema. E este Poema também somos nós. Uma geração que não se sabe muito bem. Ou pelo menos aparenta isso. Mas que muitas vezes ainda canta do mesmo jeito aquela mesma canção dos anos 80. Aquela mesma cantada pelos nossos pais. A canção dos yuppies filhos de hippies

E nós, que não somos nem yuppies e nem hippies, somos o quê? Somos quem?