sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Entre é um lugar de estar entre

Entre um espaço fixo e outro, existe um entre. E esse entre é o que é necessário para que dois espaços fixos, por exemplo, aconteçam como dois espaços distintos. Espaços que podem até se relacionar, mas que são individualmente dois espaços diferentes, com características próprias.

O entre é um lugar onde não se fixa. É um lugar de transição. É o lugar que está entre a chegada e a saída, entre uma mudança e outra. O entre, afinal, é um entre. E estar entre é, no final das contas, algo que não tem fim. Estar entre é estar entre e pronto. O entre é o entre.

Na encenação Um lugar para não ficar, de Dyego Stefann, Fátima Muniz e Poeta Rasta, com orientação de Fran Teixeira, o entre tem uma espécie de foco sobre ele. Ele está em evidência. Uma linha no meio, entre duas extremidades, demarca o seu território. E, entre esse lugar de estar entre, está o público, que observa os dois espaços fixos existentes, cada um em uma extremidade, e o entre entre esses dois espaços. Nesses espaços, existem duas figuras fixas, que parecem anunciar uma possível relação a se estabelecer daqui a pouco, principalmente pelo material que elas têm com elas: de um lado, um homem com um palito de dente e, do outro, uma mulher com balões. E o acontecimento, nesse tempo, se torna a expectativa que fica no que virá, mas que nunca vem.

Um som pontual, um bip seguido de outro, com um silêncio no meio, faz com que um bip só seja um bip por haver, entre um bip e outro, um entre de silêncio. E entre um bip e outro, pode ser perceptível a passagem do tempo. E é essa a atmosfera do lugar. Um lugar de permanência em meio a passagem de tempo.

Até que no entre, surge uma figura. Uma figura também transitória, que vai de uma ponta a outra e faz mover o que parecia imóvel. Indo de um espaço fixo a outro, transformando o próprio corpo e transformando os dois espaços. E um outro tipo de relação vai se estabelecendo entre os dois lugares, sempre possibilitado pelo entre, sempre ligados por esse entre, sempre utilizando o entre como lugar de encontro, como lugar onde é possível levar e trazer algo.

A ideia de entre parece óbvia. Porque o entre é óbvio. O entre sempre será óbvio, porque sempre haverá o entre. No entanto, construir uma obra a partir da ideia de colocar o entre como o lugar principal, possibilita uma experiência diferente diante do acontecimento. Sendo o mais importante não o fato acontecido, mas o ato de estar acontecendo. E estar acontecendo é uma ação que é possibilitada pela existência do entre. Encenar isso é, de alguma forma, fazer do teatro o lugar da ação. Como ele sempre é. Porque o teatro é um lugar de ação. Mas, a partir desse olhar possibilitado pelo entre, é dado ao teatro um lugar principal dessa ação de acontecer. E a ação se torna protagonista na linguagem teatral. Nesse caso, a ação pura, simples, por ela mesma.

Ao final, os intérpretes saem de seus lugares e ocupam uma sala. Eles entram. E lá eles permanecem fixos. O lugar entre eles não é mais demarcado. Apesar de ainda existir um entre, não é mais dado a ele o mesmo posicionamento de antes, a mesma importância, apesar de ele ser sempre importante. E essa falta de entre ocasiona a falta de transição entre as ações. E então, entre eles não acontece mais nada. É como se o entre, apesar de existir, não existisse mais. E então a palavra entre pode ganhar um novo significado: o do verbo entrar. Entrar e estar entre eles. Ou não. Depende da escolha do público. Que também pode escolher o tempo que ficará ainda com a performance. Porque ela só acaba no momento em que não existir mais quem fique. E aqui, nesse segundo momento, quem ganha importância é a ideia de permanência. Ou não.

(Foto: Toni Benvenuti)

domingo, 3 de novembro de 2013

Carol Anne vai ou não vai para a luz?


O que mudou de 1982 até agora? Como estar diante de uma obra cinematográfica estreada em 1982, repleta de efeitos especiais que dificilmente seriam usados nos dias de hoje se fossem para proporcionar ao espectador uma experiência parecida com a que as pessoas de 1982 tiveram?

O que é uma obra datada? Como dizer que algo é ou não é datado? Como saber que o que eu produzo hoje será ou não será datado? Isso é uma preocupação pertinente?

Existe uma frase atribuída à Elis Regina que diz o seguinte: "A longevidade do disco é uma coisa que pode servir de testemunha de defesa, como também pode lascar uma condenação histórica". Se trocarmos a palavra disco por filme, provavelmente também teremos as mesmas duas possibilidades: defesa ou condenação. Diversos aspectos podem ser encontrados de maneiras diferentes numa obra que atravessa o tempo. Podemos questionar éticas e estéticas, e até mesmo esses questionamentos podem se modificar de pessoa para pessoa. O fato é que a experiência de estar frente a um filme de 1982 em 1982 e agora em 2013 são experiências completamente diferentes. Isso mostra o quanto uma obra, mesmo fechada, se modifica, não exatamente por ela mesma, mas pela sua presença nas passagens de tempo. Ela sempre estará em modificação enquanto existir, porque tudo ao redor se modifica. Os públicos mudam, as culturas mudam, as tendências mudam, as técnicas mudam, as tecnologias mudam, as ideologias mudam e assim por diante.

Quem não viu Poltergeist – o fenômeno no seu período de estreia, não vai poder assistir, nos dias de hoje, ao filme do mesmo modo em que ele foi assistido naquele tempo. Portanto, o público atual não deverá ter a mesma recepção, bem como a mesma expectativa do público daquela época. A experiência de, por exemplo, rir de um efeito especial que hoje em dia não faz mais o mesmo efeito aterrorizante que fazia antes pode não ser culpa da obra, mas pode nos apontar o quanto estamos cristalizados na ideia de que Poltergeist é um filme de terror. Novamente eu pergunto: o que é uma obra datada? O fato de algo não funcionar hoje em dia do mesmo modo que funcionou tempos atrás é o que caracteriza uma obra como datada? Talvez não seja o espectador que esteja datado? O que é um espectador datado? E o que caracteriza, afinal, um filme de terror? Quem inventou o termo e como nos foi aplicado o seu modo de usar? Como isso em nós?

Por conta dessas questões, além de outras, percebo que o filme de Tobe Hooper – e, segundo lendas, também dirigido em sua maior parte pelo seu produtor Steven Spielberg –, com roteiro de Mark Victor, Matthew F. Leonetti, Michael Grais e Steven Spielberg, ainda continua atual. Porque soube se modificar e, ainda sim, não deixar de apontar o quanto estamos influenciados pelas estruturas de poder que nos rodeia.

O filme começa com o hino nacional americano. Em seguida mostra o personagem de Craig T. Nelson, o pai de família Steve Freeling, dormindo na frente da TV. E então a TV sai do ar e Heather O'Rourke, a pequena Carol Anne, faz seu primeiro contato com ela. A partir daí, diversos fenômenos sobrenaturais começam a acontecer, até o dia em que Carol Anne é sugada pelo seu armário e levada a um lugar aparentemente imaterial, onde só a televisão serve como meio de comunicação entre ela e a família.

Então a perfeita família americana, de um pai que tem emprego fixo e lê a biografia de Ronald Reagan, se vê completamente ameaçada em sua estrutura. A tranquilidade da casa não é mais intimidada por uma simples desavença entre vizinhos tipicamente americana, mas por conta de outros tipos de ataque, vindos do além-mundo.

A presença da televisão é bastante forte, inclusive nos cortes abruptos que ocorrem no decorrer do filme, que muito lembram mudanças de um canal para outro. Além disso, são exibidos nas TVs do filme, bem como no próprio filme, símbolos americanos, alguns bastante evidentes e outros menos. Há também a presença da câmera como objeto de estudo da equipe de paranormais de Beatrice Straight e o modo como a paranormalidade é associada ao sensacionalismo midiático – por exemplo, quando a personagem de Zelda Rubinstein se coloca diante da câmera dos paranormais como uma celebridade. A forte presença da propaganda de produtos durante todo o filme também é algo que parece produzir a possibilidade da alienação do espectador de televisão e do espectador do filme Poltergeist. Mas nada me produziu mais questão que a cena em que Carol Anne está assistindo à TV fora do ar e sua mãe, Diane, interpretada por JoBeth Williams – que está muito bem no filme –, diz que aquilo faz mal à visão da filha e muda o canal para outro, onde estão passando imagens de guerra.

Poltergeist, afinal, foi feito como um filme propagandista ou anti-propagandista do modo de vida americano? Ou as duas coisas? Ou nenhuma delas?

Quem ataca, é a televisão? É o próprio sonho americano, alimentado pela mídia americana e pelo governo americano, que se volta contra si mesmo? É a mania de perseguição americana – e é por isso que o modo que o horror acontece no filme é tão infantilizado? Ou é porque a perfeição americana não poderia deixar de ser ressaltada, mesmo num filme onde ela é colocada em questão? E que esse modelo de vida é tão importante que não deve ser deixado, apesar de tudo? Afinal, ao final de tudo é a família que vence.

Mas é isso mesmo? Ao final de tudo, é a família que vence realmente?

Seja como for, o fato é que o tal modelo de vida americano e a sua perfeição são colocados fora de ordem. E isso serviu, em 1982, como um produto cinematográfico de entretenimento para toda a família americana, cheia do medo do comunismo, em plena Guerra fria. Mas, e nos dias de hoje? O filme nos serve como o quê? 

Hoje em dia, Poltergeist é um filme propagandista ou anti-propagandista do modo de vida americano? Ou as duas coisas? Ou nenhuma delas?

A obra parece se mostrar dúbia, não sei se durante todo esse tempo. De alguma forma, essa dubiedade enriquece o seu entorno, possibilitando, no mínimo, dois pontos de vista extremos e milhares de discussões acerca desses dois. E isso pode também, enquanto a obra durar, "servir de testemunha de defesa, como também pode lascar uma condenação histórica". Milhares de vezes. Enquanto a obra durar.