quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Entre a órbita e a navegação


O fato é que eu estou diante de uma tela. A disposição frontal, de estar diante de, se estabelece desde o exato momento em que eu entro na sala e avisto as cadeiras. Ali é o lugar onde eu devo sentar. Esse código é seguido à risca por todos os espectadores ali presentes, que se sentam e que observam, na bidimensionalidade do quadro, alguns sinais. Através de uma projeção sobre um plástico branco, existe uma contagem regressiva, de mais ou menos cinco minutos, que revela que CASSINI: PLAYBACK vai começar. Então eu aguardo. Um som, contínuo e um tanto noise, demarca o regresso desse relógio. Vestígios geométricos surgem. Alguns quadrados e círculos também aparecem e somem calmamente, geralmente preenchidos das cores vermelha, verde e azul. E também outra frase aparece, some e reaparece várias vezes. Ela me diz: “respire profundamente”. São estas as instruções. E como quem especta, estando numa relação de estar diante de, eu sigo respirando e aguardando.

Esse antes de começar diante da tela, que sugere que eu me prepare para a enxurrada que vem a seguir, é, antes de ser prólogo e antes de ser preparação, a própria criação da expectativa de quem é espectador e se coloca na condição de estar diante de algo. O relógio me faz lembrar a linha sequencial do tempo inventado. E quando ele chega ao zero, aí é quando CASSINI: PLAYBACK efetivamente começa, embora ele já tenha começado.

Essa proposição é a terceira de um projeto chamado CASSINI, desenvolvido como uma pesquisa de Gabriel Matos no Teatro Suspenso, grupo em que ele e Toni Benvenuti participam desde a sua criação, em 2009. CASSINI propõe a criação de diálogos na esfera caótica da comunicação, sendo o título do projeto uma alusão a um satélite em órbita no planeta Saturno, correspondente ao Caos na mitologia grega. Contando com outras peças em diferentes mídias e linguagens e na fricção entre elas, CASSINI – com o título escrito assim mesmo, nervosamente em caixa alta – propõe pensar a linguagem teatral na sua expansão intermídia. Mas como isso acontece se, até então, no momento em que eu entrei para me relacionar com essa proposição chamada CASSINI: PLAYBACK, eu ainda estou no diante de?

Quando a contagem regressiva termina, Gabriel Matos, com os lumens do projetor, compõe com a tela uma coreografia repleta de espaços e lacunas a se preencher (ou não), transformando a bidimensionalidade em outras dimensões. O caráter passivo do espectador, aos poucos, é convocado à interação. E então eu, como quando estou à frente do computador, posso me deixar (ou não) interceptar pelo caráter unilateral da passividade, tal como acontece geralmente na nossa relação com a televisão. Portanto, a decisão está no público. Embora todos os sinais me convoquem e me provoquem à expansão e à busca de me desmembrar por abas e mais abas, abrindo campos e conexões, eu posso optar por assistir passivamente.

Será que eu posso optar por apenas assistir passivamente?

Anúncios de antivírus. Telejornais. Telepropagandas. Virais. Memes. Facebook. Youtube. Whatsapp. Slogans. Hits. CASSINI: PLAYBACK é uma composição audiovisual feita na multiplicidade de sons e imagens disso tudo. Gabriel, como numa opereta, não apenas dubla, mas compõe com todas essas informações, deixando que elas também componham com ele. A tela perde o centro, a geometria euclidiana perde forma para a geometria fractal, os pontos de vista se ampliam, as existências se multiplicam, as perspectivas se misturam, as proporções se perdem e assim a peça também perde o humano que, embora seja lembrado na sua consistência – por ser de carne e por estar em cena –, também se desorganiza no caos e perde a sua importância enquanto humano.
     
Isso é percebido se eu optar por apenas assistir passivamente?

Até que, num determinado momento, a peça, que não se divide por cenas, mas por momentos de múltiplas abas, se modifica para um momento de canal. As abas se fecham e tudo escurece. No centro, um quadrado pisca nervoso a cor vermelha. Aqui, o centro é reativado. Então, em seguida, uma única aba surge, no centro, onde Gabriel está. Ele, dentro de uma forma retangular ampliada no centro, me faz experimentar novamente a condição de estar diante de algo. Ali, diante de mim, só existe ele. Ele e o seu playback.

Se eu tiver optado por ir além de assistir passivamente: como se dá esse retorno ao estar diante de algo?

Até que novamente o espaço se transforma, agora em duplo, onde, de um extremo lado palavras e mais palavras formulam diversas frases que às vezes se misturam em manchas pretas, e do outro extremo o intérprete dá continuidade ao seu playback na dublagem de dezenas de vídeos. No centro, surgem formas geométricas a se repetir, como se estivéssemos diante de um tríptico que, na rapidez de sua mudança, me faz experimentar novamente a relação entre as múltiplas abas.

Ao compreender o projeto como uma ação de orbitar pelo Caos, é também possível perceber as crises da comunicação na sua fase intermidiática. E é principalmente a partir da transição-relação televisão-internet que CASSINI: PLAYBACK se dá. A televisão, que não deixou de existir por conta de internet e que tenta se reconfigurar o tempo todo na tentativa de se expandir, e a internet, que não é totalmente experimentada na sua complexidade também pela maneira que a maioria de nós estamos acostumados a lidar com a hegemônica TV.

Será que eu posso optar por apenas assistir passivamente? Sim, talvez. Isso é percebido se eu optar por apenas assistir passivamenteNão sei. Se eu tiver optado por ir além de assistir passivamente, como se dá esse retorno ao estar diante de algo? Esta é uma questão importante sobre autonomia, de modo que essa proposição de Gabriel Matos e do Teatro Suspenso me faz refletir ativamente acerca do modo como eu opero enquanto espectador, onde eu é possível ser provocado o tempo todo nessa relação intermidiática repleta sensorialidade (entre a televisão e a internet, entre a bidimensionalidade e a tridimensionalidade, entre a geometria euclidiana e a geometria fractal etc.). Mas será que é possível apenas assistir passivamente? Todas as questões do trabalho estão na maneira como eu me relaciono com ele?

Há, nessa transição-relação televisão-internet, uma transposição nas relações de comunicação. Simplificar essas relações como apenas ligações entre emissor e receptor com ruídos na mensagem não dá conta do que é possível na vasta imensidão do espaço. Nesse sentido, o trabalho aqui em questão, de certa maneira, me propõe que eu encontre reorganizações e rearranjos na condição de espectador se eu quiser me conectar com ele de maneira expandida.

* * * * *

Em Gif, glitch bit! a palavra navegar exerce uma importância tão forte quanto orbitar para CASSINI. Embora os dois verbos tenham sentidos aproximados, cada um deles têm características próprias. O orbitar de CASSINI é como o transladar de um satélite ao redor de um planeta caótico. O navegar de Gif, glitch bit! pressupõe oceanos e movimentos para além de estar ao redor.

Do lado de fora é possível ouvir uma música alta que chega para fora do espaço. Tempos depois, o espectador é convidado a entrar. E é então que ele se descobre como participante.

Gif, glitch bit! é uma instalação dançada desenvolvida no laboratório de dança do Porto Iracema das Artes em 2015 como um projeto de Felipe Damasceno e William Pereira Monte. A tutoria do projeto – palavra esta designada pelo Porto Iracema a um artista escolhido pelos membros do projeto para participar como colaborador / orientador etc. do processo – foi exercida por Sheila Ribeiro; e também colaboraram com o processo os artistas Caroline Holanda e David da Paz.

Aqui, todo o espaço é recepção. Ao entrar, poderíamos escolher qualquer lugar para ficar. Estávamos dentro de um quadrado branco, bastante poluído por emaranhados de fios, projetores, ventiladores, diferentes materiais, além de muitas pessoas, estampas e cores distintas. O público se olha sem muito saber o que fazer. A vontade é de ficar de fora para observar o quadro. No caso, como não havia quadro, o centro. Então as pessoas se apoiam nas paredes. Até que projeções surgem. E as pessoas vão para o centro. A coreografia já havia começado.

A música, composta por Wladimir Cavalcante, age na criação da ambiência. Projeções surgem, para além das paredes, também no chão. E o bidimensional do vídeo se tridimensionaliza nos corpos. Vídeos com palavras e tags importantes para a cultura digital, vídeos mostrando diferentes formas de deslocamento do Porto Iracema, onde o processo se desenvolveu, até ali: o Galpão da Vila, onde agora o trabalho se apresentava. Selfies dentro do táxi ou em cima da bicicleta, street view do Google Maps, várias maneiras de fazer mapas. Mapas que também se tridimensionalizam na imagem através de inúmeras formas e possibilidades de leituras, abandonando a ideia de plano.

Até que os intérpretes – será que eu posso chamá-los de intérpretes? – ou propositores do trabalho, que estavam ao nosso lado desde o começo, normalmente, olhando as projeções como todos nós, começam a dançar. Mas antes eles já não estavam dançando? E nós, participantes, também não estávamos?

Gif, glitch bit! age como um desencadeamento de uma série de estranhamentos desde não saber como se portar na obra até descobrir possibilidades de conexão dentro dela.

Felipe e William não apenas se movimentam por todo o espaço, mas também movimentam o espaço, enquanto os outros participantes, muito tímidos e ainda presos ao paradigma de ser espectador, não têm onde se apoiar, a não ser na incerteza do seu agir enquanto participador ativo.

Nas projeções, gifs e mais gifs. Repetições. Possibilidades de conexão entre figuras diferentes e momentos distintos. Os propositores agem nessa relação com o espaço onde se pode navegar. A tecnologia como suporte não é mais possível ou visível, porque o trabalho se dá nas correlações, na destruição das hierarquias. Aqui o centro não existiu nunca, a não ser pelo desejo dos participantes em serem espectadores ao adentrar o espaço. E agora eles estão desamparados por não saber como dançar.

Em Gif, glitch bit! o espectador não poderá jamais ser espectador porque não está diante de um espetáculo, mas, ao contrário, está em um lugar onde ele possa navegar e propor ativamente. Portanto, esse participante, antes mesmo de ser convocado a participar, é exigido, na surpresa da navegação, que ele se reorganize e se rearranje enquanto espectador para outra maneira de compor naquela dramaturgia.

Essa surpresa, que é também o risco e o perigo – e também a importância – de Gif, glitch bit! possui, ao mesmo tempo, a capacidade de nos fazer perdidos e conectados nessa navegação.

Se eu tiver como parâmetro uma relação padronizada entre obra e público, o perder a conexão seria um problema? Certamente, sim. Aqui, nenhuma relação parece padronizada. Então, como uma conexão de internet que é interrompida do seu fluxo, como numa falha glitch, a perda da conexão é possível e permitida. Como no emaranhado de fios, tudo está à mostra. Não há mistério. Não há um lugar para onde olhar. Pode-se olhar para qualquer lugar.

Por que esse modo de se relacionar, presente e acessado pelas nossas vidas no nosso dia-a-dia, ainda gera crises na relação com seu participador (que se sente confortável na condição de espectador?). Onde será que a separação entre vida e obra se dá primeiramente?

Até que frases surgem nas projeções sugerindo que façamos algo. Pessoas se entreolham. Algumas arriscam mudar de lugar, embora a maioria esteja engessada. Outras se movimentam e começam a dançar, embora sem deslocamento. Então imagens lisérgicas surgem no espaço. A música se intensifica num jogo de ,, mi,, sol, lá, si que se quebra na repetição desse paradigma, somando-se a quebra de inúmeros paradigmas aqui quebrados. Então algum dos propositores entrega um projetor a alguém, que decide onde vai iluminar e projetar. E então, como numa crescente, quando na instalação se instaura uma necessidade de que não permaneçamos mais tão parados, tudo apaga de uma vez. Tudo. E a luz acende. E acaba?

Algo igualmente difícil na relação com essa obra está no findar da ação. A dificuldade aqui relatada não se autoproclama difícil como defeito, ao contrário, se chama difícil pelo que nos está encrustado enquanto percepção construída.

Esse risco e perigo de Gif, glitch bit! de não preparar os seus participantes com âncoras, deixando que eles naveguem livremente, confere ao trabalho a coragem de conferir autonomia a quem chegar na instalação. E, sabendo que a autonomia é um risco para ambos os lados, a importância do trabalho é também a de questionar onde os sensos foram inventados.



quinta-feira, 17 de julho de 2014

O que pode estar contido num objeto para ser suspenso

É como se uma palavra me pedisse para ser citada. Mas ela pode soar inadequada. Ela pode soar perigosa. Porque ela pode ganhar mais de um significado. E isso pode ser bom. Mas também pode ser ruim. Porque essa palavra poderia, de repente, ganhar um significado simplório. E isso eu não quero. De jeito nenhum. Porque não seria justo. Então, se eu não explicar bem direitinho o que eu quero dizer ao usar essa palavra, ela pode ficar por demais em aberto. E isso pode ser bom. Mas também pode ser ruim. Esse é o perigo desta palavra. Como, então, é possível citá-la? Como é possível fazê-la? Como construir o seu significado? É preciso minúcia. É preciso, talvez, saber de alguns outros significados da mesma palavra. E é preciso escolher o caminho de construção desse significado a ser dito, afinal. Um caminho. Não necessariamente uma chegada pré-estabelecida. Mas um caminho, pelo menos. As primeiras decisões. Os primeiros pontos de partida. Porque tudo depende da forma como essa palavra será composta. Muito mais que uma palavra explicada. Mas uma palavra exercida. Talvez seja preciso admitir o meu processo de chegada nesta palavra para que ela não atraia muitos riscos a ela. Para que assim, depois, eu possa explanar-me nela e adquirir outros caminhos que não se fechem num beco sem saída. Para que todos os riscos não fiquem só em mim, mas sejam divididos abertamente com quem quiser participar deste texto. Para que eu possa adquirir outras qualidades de arriscar-me. Para que, então, haja propriedade para falar sobre aquilo que está no topo. No alto.

O espetáculo Palafita, do Grupo Fuzuê, de autoria de Edmar Cândido e Eric Vinícius e interpretado por eles dois, parece admitir os seus riscos. Então, para escrever sobre ele, é preciso que eu aprenda com ele algo sobre a sua composição. Para que eu também possa compor esse texto. Que é também um estudo. E se faz num processo de busca.

A palavra que me pede para ser citada é suspensão. Seria difícil que eu escrevesse sem usá-la, quando, na verdade, este trabalho me parece um estudo de suspensões. No entanto, é muito difícil falar suspensão porque, quando essa palavra me vem, eu não quero falar de suspensão, mas eu quero dizê-la enquanto processo de descoberta. Eu quero encontrar nesta palavra já batida uma outra que dissesse o que é possível enxergar nesse estudo.

Suspensão poderia trazer ideia de êxtase, de perplexidade, de pausa, de hesitação, talvez até de incerteza. Talvez até de incompletude, quem sabe. Mas não. Eu quero falar de suspensão me referindo apenas como algo que não toca o chão. Dessa forma: limpa e seca. Algo não toca o chão.

Daí, para falar de algo não toca o chão, eu preciso falar como é esse não tocar o chão. Chegou o momento de admitir os pesos. Então, eu tenho como sugestão a imagem de uma palafita. Logo assim: dada a mim como primeira imagem, por ser usada como o título do espetáculo. Palafita. Uma palafita. Pesada, mas na sua medida de peso ideal. De madeira. Com suas pernas de madeira. Que tem as suas forças. Mas que tem também as devidas fragilidades de uma palafita.

É importante dizer que não é a suspensão de uma bailarina clássica. É a suspensão de uma palafita. Uma palafita sobre um rio. Com estacas de madeira que a sustentam, que a suspendem. Estacas que são parte dela enquanto palafita. E uma palafita é aquilo que ela é. Com o seu devido peso. Uma construção que admite, na sua feitura, o seu processo. E não engana a ninguém. Ao contrário de uma bailarina clássica, que apesar de também ter pernas que, de certa forma, a sustentam, está muito mais sustentada numa técnica que esconde o processo e exibe apenas o produto final. Digo: uma bailarina clássica, e não uma bailarina com a técnica clássica; mas uma bailarina clássica: que está construída enquanto bailarina não apenas na técnica, mas também nos modos de fazer do balé clássico, muito ligados à ideia de ilusionismo e ainda com bastantes influências do romantismo.

A palafita, ao contrário da bailarina clássica, exibe, na sua forma, o seu processo de feitura. Uma palafita tem estacas que a sustentam e que estão ali, naquela obra, admitindo que são estacas que a sustentam. De madeira. Mesmo que uma palafita seja um produto final, algo nela diz que aquela construção ainda é processo. Porque ela exibe o seu processo. Sendo ainda um processo, apesar de já ser um produto final.

Como num estudo que parte da ideia de suspensão, assim, limpa e seca, o espetáculo Palafita se constrói ao longo de seus pouquíssimos minutos como se constrói uma palafita. Uma palafita que, exibindo na sua construção as suas estacas, exibe também na sua forma o seu conteúdo. E aqui tem-se outra palavra perigosa: conteúdo.

É preciso, para falar de conteúdo, admitir que os significados da palavra conteúdo são mais de um. Então, é preciso eliminar, para a construção desse texto, a ideia de conteúdo como assunto. E é preciso observar conteúdo como uma palavra relativa aquilo que contém. Dentro, acerca. Enquanto objeto ou produto. Enquanto matéria. Como aquilo que está contido.

E assim, como uma palafita que contém estacas e que exibe na sua forma aquilo que ela contém, o espetáculo Palafita também exibe o seu conteúdo na sua forma. De maneira aberta, sem tentativas de esconder. E o mesmo aconteceu aqui, agora, neste texto: ao falar da palavra conteúdo como uma palavra que é diferente de assunto. Mas como uma palavra que pode dizer, de maneira direta, que determinado assunto está contido em determinada forma. Dando a devida importância da palavra conteúdo. Como uma palavra que pode falar sobre aquilo que está contido em algo. É possível, como maneira de exemplificar, que se observe esta imagem: está contida na minha cabeça algumas ideias. E essas ideias podem ser o conteúdo da minha cabeça. Mas, por serem um conteúdo, elas não são necessariamente um assunto. Elas são algo. Palpável.

E, da mesma forma que uma palafita não precisa ter um assunto, o espetáculo Palafita também não. Ele pode ser aquilo que ele é. A exibição do seu processo. E a exibição da sua feitura. Como num poema concretista.

Se uma bailarina que tem a técnica clássica, mas que não segue os modos de fazer clássicos, decide trabalhar com a sua construção de corpo como algo a ser contido num produto, aquilo não necessariamente é um assunto. Mas está lá, contido na sua forma, a admissão do seu conteúdo.

E o espetáculo Palafita, portanto, é assim: um conteúdo de suspensões. Com admissões de risco. Com admissões de peso. E com admissões daquilo que ele contém. Com admissões sobre aquilo que ele contém.

Os materiais utilizados são aquilo que eles são. Os corpos são aquilo que eles são. E eles agem da forma como eles agem. No espaço que existe ali e que ali é também admitido. E assim é construído ali, naquele espaço, durante aquele determinado tempo, um trabalho forte. De músculos. De carne e de ossos. De olhares. De respirações. Onde não são levantadas questões como perguntas, mas como exibição de materiais. Materiais que expõem forças e fraquezas. E que, por si só, são o bastante para que se racionalize no corpo questões que não contém assuntos, mas que contém sensações e desejos.

São construções. São coisas. São suor de verdade. São pele.

Não caberia na feitura deste trabalho a exibição de grandes truques como forma de iludir um público com a grande força dos intérpretes, porque as suas opções de composição são outras. Não tem a ver com iludir. Não tem a ver com ludibriar. Tem a ver com assumir. Tem a ver com gritar o que acontece. Com descobrir e levantar essas descobertas. Às vezes mínimas. Às vezes grandes. Mas nunca geradas ou movidas a partir da ideia de exibição gratuita de um grande truque.

Ao contrário do que muito é falado sobre técnicas circenses, como técnicas irremediavelmente virtuosas, que contém muito mais do que o necessário para adquirir formas que levantem questões sobre a contemporaneidade e para a contemporaneidade, o Grupo Fuzuê conseguiu descobrir um modo de operar que vai exatamente na contramão disso através da admissão da sua técnica. Na exibição de fato dela e do que ela é. Como técnica circense que se exibe como técnica circense na sua construção. Não se prendendo a ela. Mas encarando a técnica como um modo de jogar e como um modo de compor na cena. Despida de qualquer virtuosismo. Construindo e reconstruindo, naquele lugar de fazer, aquilo que o circo que eles fazem contém. Exatamente como colocar à vista aquilo que parece estar exaurido ao redor. E compor com isso. Nesse esgarçar da técnica com ela e para além dela através dela. Não na execução de uma pegada ou de um passo, mas na construção da obra, na construção dos corpos e da espacialidade que se faz presente no momento em que a obra acontece. Na investigação contínua. Nas descobertas e nas necessidades de descobrir. No hibridismo. Na construção das formas, das texturas, do próprio ato de compor e de estar ali: compondo naquele momento, naquele tempo-espaço. Independente de ser ou não um espetáculo marcado e ensaiado. Porque é um espetáculo que se exibe com a prontidão de algo que nunca está pronto e que está sempre na construção da necessidade em ser feito.

Como um penetrável de Hélio Oiticica, que está ali para existir na necessidade de entrar naquele espaço. Como um bicho de Lygia Clark, que está ali para existir na necessidade de manipulação daquele objeto. Ou mesmo como um Parangolé, também de Helio Oiticica, que está ali para existir na necessidade de vestir aquela capa e dançar.

Palafita é um objeto para ser suspenso. E está ali para existir na necessidade de também poder ser aquilo que lhe contém. Da mesma forma que uma obra de Sérvulo Esmeraldo pode ser um objeto, uma escultura ou algo de ferro, Palafita pode, sim, ser um espetáculo, uma performatividade ou algo de circo.

Palafita pode também ser um poema concreto para ser lido e participado na sua construção e na sua dança.


domingo, 18 de maio de 2014

Reprodução como estratégia de envolvimento ou de questionamento ou de quê?


Imagine uma grande empresa. Imagine uma grande empresa de entretenimento. E se imagine como um cliente desta empresa. Agora imagine que a tal empresa tenha vendido a você gato por lebre. Exatamente: você quis comprar lebre, eles te venderam lebre e, aí, ao abrir a caixa, tinha lá um gato. Isso mesmo: um gato. Mas isso é apenas um símile. A situação, na real, é a seguinte: 1) você queria assistir a um espetáculo de teatro contemporâneo e foi parar num espetáculo de entretenimento ou 2) você queria assistir a um espetáculo de entretenimento e foi parar num espetáculo de teatro contemporâneo.

E agora? Será que a empresa irá falir por conta do seu público insatisfeito? E que empresa é essa que, ao tentar se relacionar com dois públicos diferentes, é capaz de deixar os dois insatisfeitos? E como essa empresa pode, ainda, ter deixado satisfeitas pessoas de ambos os públicos sem modificar nada em seu produto? Porque, sim: existem pessoas que, apesar de tudo, saem satisfeitas. Quem seriam elas?

Essa é uma surpresa que abriga a obra Price world ou Sociedade a preço de banana, do EmFoco Grupo de Teatro, que tem como encenador Eduardo Bruno, como tutor do projeto o também encenador Marcos Bulhões e, como participantes propositores, os atores-performers Dyhego Martins, Gabriel Matos, Georgia Dielle, Lyvia Marianne, Marcelle Louzada e Thales Luz, além da participação em vídeo de Marie Auip. E como todos devem saber, surpresa pode ser algo muito bom para quem gosta de consumir.

A peça se passa dentro de um ônibus. O ponto de partida é o Porto Iracema das Artes, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, onde o grupo residiu durante alguns meses do ano de 2014 ao ter sido contemplado pelo edital de pesquisa teatral do Porto. Depois de entrar no local da encenação, partimos, então, numa rota pela cidade de Fortaleza.

O desabrigo que podemos sentir em relação a termos comprado gato por lebre é uma das maneiras que o trabalho tem de chegar ao público. Porque as situações constrangedoras que surgem ao longo do acontecimento podem nos colocar em situações de enfrentamento àquilo que deveria estar satisfazendo o nosso desejo. Isso não só no âmbito de quem quer ver entretenimento, mas também no âmbito de consumidor de arte contemporânea. Afinal, ninguém parece estar livre da captura do consumo. Nem mesmo os artistas contemporâneos e o seu público... Ou será que os artistas contemporâneos e o seu público estão livres?... Quem está livre do consumo?...

Por outro lado, a composição também pode agradar. E essa é a maneira mais forte que o trabalho parece ter de chegar: tanto aos consumidores de entretenimento que entram no jogo de reprodutibilidade de máximas do consumo que são jogadas pelos proponentes da cena de modo, muitas vezes, exacerbado; como também pode agradar aos consumidores de arte contemporânea surpreendidos pelo seu gostar de algo que entretenha (mesmo sem questionar o que os faz gostar tanto daquilo) – porque, afinal, ninguém parece estar livre da captura do consumo.

E nesse jogo entre agradar ou desagradar, entre reproduzir ou questionar, onde fica o posicionamento da obra?

O consumo afirma, no formato em que ele acontece, o mesmo que Immanuel Kant afirma na sua filosofia ao fazer relações intrínsecas entre o julgamento e o gosto. Porque sim, a grande arma do consumo é agradar para vender cada vez mais. Mas, se tratando de teatro contemporâneo e fugindo da obrigação imposta por este modelo, Price world ou Sociedade a preço de banana, mesmo que trate de consumo e nos leve, através da reprodutibilidade, a entrar na necessidade do divertimento e no modo de julgar a partir do gostar ou do não gostar, se trata de uma peça de teatro contemporâneo. 

Sendo este teatro um instrumento da arte contemporânea, cabe ao espetáculo que ele seja questionado sobre o seu modo de ser produzido e de reproduzir. Sendo assim: será que, ao encenar tantas vezes as máximas do consumo e ao brincar com o envolvimento do público diante da obra, algo está sendo questionando na obra Price world do EmFoco Grupo de Teatro? Quais seriam essas questões? Será que a reprodução já questiona por si só? Ou apenas gera identificação sem criticidade? Ou apenas gera identificação e vontade de cair no playground ou sair dele direto para um lugar bem mais confortável?

Nesta jornada, onde podemos muitas vezes esquecer onde estamos, poucos momentos parecem ser dispositivos para questionarmos o que estamos vivendo e o que estamos usufruindo ou o que está nos incomodando profundamente naquele tempo-espaço móvel. Esses momentos são marcados pelas pouquíssimas pontuais relações que são estabelecidas entre o dentro e o fora do ônibus, entre a cidade de Fortaleza e nós que estamos participando daquela peça bem naquela hora. Relações que podem ser importantíssimas, mas que parecem ter sido pouco exploradas. Ou mesmo parecem ter sido exploradas de maneira irresponsável, só reafirmando o divertimento ou a indignação que podem surgir diante dessa reprodução que refaz e que acaba se tornando também um verdadeiro modelo de operação capitalista.

No final das contas, a peça realmente pode terminar por agradar ou desagradar. Apenas. Gerar ódio ou divertimento. Através do desleixo e da falta de cuidado com o público ou através da fanfarra. Tudo dependendo de quem está lá participando. Todos estão sujeitos a saírem felizes ou frustrados. Como em qualquer restaurante. E ambas as relações são diagnosticadas através do modo que a peça é construída: o de repetir e repetir e repetir o que já acontece. Gerando aquela satisfação de ter comprado um Cartier com ponteiros de ouro e números de brilhantes ou aquele aborrecimento de ter sido acordado por uma ligação de telemarketing num domingo pela manhã.

No entanto, como consumidor de arte contemporânea, podendo estar apenas desgostando de tudo e estar julgando a obra por tudo aquilo que me desagradou – afinal, ninguém parece estar livre da captura do consumo , eu acredito que a importância de Price world está no fato de podermos questioná-la enquanto obra ou consumo. E nós podemos, sim, questioná-la enquanto entretenimento ou arte contemporânea. Entretenimento que agrada ou desagrada e arte contemporânea que é feita a partir da reprodução da contemporaneidade ou que é feita para o homem contemporâneo questionar o que ele anda vivendo e aceitando no mundo.

E também porque Price world permite que eu questione a mim mesmo como público contemporâneo a possibilidade de, no fundo, eu ser como qualquer outro público clássico que está apenas desagradado do que viu e acabou realmente não gostando.

E é isso que me agrada em Price world.

E também, o que me agrada como consumidor não só de arte contemporânea, mas de entretenimento, é o fato de que em Price world se pode beber muito, fumar muito, dançar muito e rir muito dentro de um ônibus. Muito. Apesar de ele ser um ônibus. Mesmo que alguém ao seu lado odeie tudo isso.

E diante daquilo que soa feito de maneira irresponsável, como consumidor de arte contemporânea envolvido pelo acontecimento, o meu verdadeiro desejo é que tudo aquilo que existe em Price world seja quebrado. Que as putas se revoltem e queimem Price world. Que os mendigos joguem pedras em Price world. E que os consumidores de Price world saiam de Price world o mais rápido possível. E que seja para acabar com Price world e não para colocar Price world na Justiça como se coloca qualquer loja, como eles querem que nós coloquemos. Não. A Justiça também é vendida. Eu desejo é que seja destruída toda e qualquer Price world. Porque, para que Price world pudesse ser destruída, teria que ser gerado desconforto suficiente para isso. E a destruição daquilo que é câncer no mundo contemporâneo pode ser uma grande modificação. E eu fico muito feliz que eu seja uma das pessoas a odiar Price world

Se Price world vem como uma maneira de tentar fazer o mundo diferente, talvez uma saída seja o de envolver por lados ruins até provocar os limites. Então Price world poderia se assumir como uma peça ainda mais arrogante, invasiva, pretensiosa e cheia de empáfia. Sendo ela uma peça para ser odiada como proposta.

No entanto, Price world não é tudo. É apenas uma peça de teatro.

Mas será que uma peça de teatro é apenas uma peça de teatro? Não seria uma visão de mundo? Ou seria o quê?

Ao trabalhar com o envolvimento, Price world pode, sim, estar sujeita a destruição. E assim podemos, como público, querer destruir a representação daquilo que nos atinge. Seja isso ético ou não. Seja isso responsável ou não. Porque, diante do que parece ser irresponsável, atitudes irresponsáveis também podem surgir como resposta. 

E é bom que Price world saiba lidar com o risco de desabamento. E é bom questionar os lados bons e ruins – e também todos os outros lados que não recebem os adjetivos bom e ruim – do fato de ter comprado gato por lebre.

* * * * *

Por outro lado, a obra de dança Sagração ao fast food, do artista independente Felipe Damasceno, que está sendo realizada há mais ou menos três anos, propõe em seu título, além de uma referência à obra Sagração à primavera de Vaslav Nijinsky, também uma proposição de exaltação a um modo de fazer capitalista: o da comida rápida.

Então Felipe está nu, de fácil acesso, mesmo num palco italiano. Tudo muito rápido. Emergencial. E não há nada ali, além dele e além da sua técnica, que eleve o trabalho a qualidade de um grande espetáculo ou que dê ideia de que aquilo é muito distante da realidade. 

É um trabalho simples, feito de ossos e músculos e lembranças. Apenas. Daquilo que reproduzimos sem parar e que, muitas vezes, nem questionamos. Mas Felipe faz isso sabendo que a partir daquele momento tudo aquilo poderá e até mesmo deverá ser questionado.

A movimentação, por vezes, parece bastante sintética e robotizada apesar de haver bastante suor. Felipe vai dançando uma composição de gestos usuais e de fácil acesso e reprodução que a mídia nos joga todos os dias. E que, a cada dia que passa, são cada vez mais naturalizados.

E assim ele dança o seu trabalho, utilizando também a reprodução pura e simples como estratégia dramatúrgica. No entanto, sem trabalhar o envolvimento. Se aproveitando inclusive do conceito de fast food como uma arma reversa ao capitalismo. O nome do trabalho indica uma coisa e nós vemos o simples. Isso vem desde o início. Desde antes do trabalho. E quando nós o vamos assistir, vem sendo retirado de nós aquele sabor da comida deliciosa. Ela é servida crua. E se torna mal passado aquele hambúrguer que parecia tão delicioso. 

Mas como isso é possível? Não só através de alguns mecanismos muito simples que são utilizados como forma de não nos envolver e de questionarmos o tempo todo aquilo que nós vemos, mas também através da lembrança que Felipe Damasceno propõe no momento em que a obra está começando a se tornar familiar demais pra nós, no momento em que pensamos que não há mais nada a ser feito: ele se mostra humano e nós, também como humanos, somos lembrados disso: de que somos humanos. E atrás de tudo aquilo que é a sociedade de consumo, tem gente. E na frente de tudo aquilo que é a sociedade de consumo, também tem gente. E acerca de tudo aquilo que é a sociedade de consumo, tem gente também do mesmo jeito.

E o emergencial do fast food não é mais o de uma fome que precisa ser saciada agora porque daqui a pouco eu tenho que trabalhar ou porque eu quero mesmo muito comer alguma comida gostosa e funcional. É porque é emergencial que a gente saiba que a gente é humano e não mercadorias ou armas do consumo.

E essa gente somos todos nós. Os envolvidos. É assim que nós estranhamos essa nossa condição e saímos de lá com vontade de mudar tudo.

É importante que não sejamos hambúrgueres ou bananas vendidas em sacolas de plástico.

(Foto: Tayana Tavares)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Nem yuppies e nem hippies: vagabundos

(Foto: Alex Hermes)

Eu fui surpreendido por um relato. Era um conhecido que perguntava que país era este. Ele perguntou isso e, em seguida, contou uma história: é que tinham assaltado a mãe dele há pouquíssimo tempo. O assaltante era um homem que estava armado. E ele levou o carro dela. Isso bem na porta de casa.

Algumas pessoas, ao se depararem com um relato desses, poderiam muito bem dizer que o ladrão se trata de um vagabundo. Como é de costume dizer ou ouvir. Muita gente fala assim. Muita gente por aqui. Nesse país que é sempre perguntado a ele mesmo o que ele é.

E essa pergunta, de que país é este, é facilmente identificada como uma referência à música Que país é este, do compositor Renato Russo, grande sucesso nos anos 80 gravado pela sua banda Legião urbana.

E que país é este, afinal? E por quem é inventado este país?

A peça Vagabundos, dirigida por Andréia Pires, parece fazer essa pergunta. No elenco, participam vinte e quatro atores-bailarinos-performers vagabundos e criadores. Muita gente lançando perguntas sobre o país em que vivemos. Sobre a cidade em que habitamos. Sobre o mundo. Sobre estar no mundo. Sobre os lugares que a gente anda assumindo por aí como juventude transformadora ou não de um país que sempre se pergunta para ele mesmo o que ele é. 

E tudo isso em uma peça absolutamente vagabunda. Suja. Feia. Maltrapilha. Desordenada. Confusa. Mal resolvida. Mal comportada. Mal colocada. Reivindicadora. E ao mesmo tempo pop. Tamanha é a sua vagabundagem.

E tudo isso como? Levantando as diversas hipóteses sobre toda uma vagabundagem operante neste país. Este país que – eu repito – sempre se pergunta para ele mesmo o que ele é.

Então Vagabundos também pergunta o que Vagabundos é. E assim Vagabundos é uma peça suja, porque não poderia ser diferente. Feia, porque não cabe a ela ser bonita. Maltrapilha, porque se veste terrivelmente. Desordenada, porque a sua ordem é estabelecida através da desordem e isso vai se evidenciando cada vez mais ao decorrer da peça. Confusa, porque as informações são muitas e as vozes se confundem de tantas que elas são. Mal resolvida, porque é uma peça que nunca se fecha e que nunca se completa. Mal comportada, porque é marginal e porque coloca a cena num lugar de questionar o cumprimento da cartilha de uma boa peça de teatro ou dança – inclusive perguntando se ela, como peça, é teatro ou dança e se definir isso, no final das contas, é realmente importante. Mal colocada, porque não estabelece apenas uma visão. Reivindicadora, porque não só é política, mas se assume como tal e escancara isso. E ao mesmo tempo pop, porque também utiliza referências pops em sua composição, tanto no que há de mais tendencioso nas artes quanto no dia-a-dia daquelas pessoas que compõe aquele trabalho. Tamanha é a sua vagabundagem.

Mas quem são esses vagabundos? Vagabundo é o quê? Vagabundo é quem? Vagabundo é quem leva uma vida sem trabalho e vadia? Ou é também vagabunda aquela bijuteria que perde a cor dois dias depois de usada pela primeira vez?

Quais sentidos a gente encontra nesse adjetivo? Em quais sentidos nós nos encontramos? E nesses sentidos, quais os motivos? Por que nós nos chamamos assim? Por que nós chamamos os outros assim? Por que nós dizemos o nosso governo assim? Por que nós dizemos os nossos governantes assim? Quem merece o status de vagabundo? Vagabundo é um título bom ou um título ruim no final das contas? Ou, no final das contas, bom ou ruim não cabem ao vagabundo?

Sem posição definida diante dos fatos exibidos em cena, Vagabundos exibe muitas opiniões ou nenhuma. E nós, como eles que estão em cena, cada um com sua opinião latente, também vamos depositando ali os fatos que vemos, vivemos e lembramos. E assumimos ou não as nossas posições. Diversas. Muitas vezes vagabundas. Muitas vezes bem informadas ou alienadas. Afinal, todos nós estamos sujeitos a sermos capturados pelo sistema. Tanto nós, espectadores, quanto quem participa da feitura da peça. E assim continuamos seguindo sem certeza. Construindo um país desde 1500. Construindo um país que é sempre perguntado a ele mesmo o que ele é. Às vezes sem muita preocupação ou embasamento. Às vezes reproduzindo algum discurso de jornal ou de revista. Ou de algum político querido nosso. Ou daquilo que ouvimos em sala de aula ou na televisão. Ou mesmo não opinando em nada. Mas talvez assumindo a nossa postura de Macunaíma. O anti-herói preguiçoso que dá nome ao livro de Mário de Andrade. Capaz de se transformar e de assumir tantas facetas. E, como bons macunaímicos que somos, transitando como vagabundos por essas opiniões todas. E transitando nas diversas outras qualidades que a palavra vagabundo tem. 

Ao sair do teatro, é possível perceber que está lançado um diagnóstico. Ou mesmo vários diagnósticos. E então? O que nós fazemos com eles? O que nós podemos fazer? Como ganhamos força para essas vozes que gritam tanta coisa por aí, sendo tantas observações ou sendo tantas reclamações? É possível unir essas vozes? É possível unir tanta gente para tantas causas que nos agrupam e, ao mesmo tempo, nos dissipam?

Como participar de tamanha violência com uma violência ainda maior e capaz de nos colocar firmes um ao lado do outro para enfrentarmos tantas questões juntos? Diante da quebra dessa cegueira e dessa surdez que insistimos em ter, como ainda nos mantemos imóveis e inativos?

E que país é este, afinal?

Os diversos públicos, nos shows em que essa música é tocada, geralmente respondem que este país "é a porra do Brasil". Sendo o mais seco possível, a reposta pode ser, de repente, que este país somos nós. Porque, afinal, nós não somos mesmo este país? 

Sim. Nós somos este país.

Ou, se for para ser poético, podemos responder a música do Renato Russo com outra canção. Então a resposta pode ser, de repente, uma música do Cazuza e do Frejat. Uma música que, de repente, fale sobre esse estado de se perder e não tomar iniciativa diante de tantas coisas que, por si só, gritam tanto. 

Sim. Este país é um Poema. E este Poema também somos nós. Uma geração que não se sabe muito bem. Ou pelo menos aparenta isso. Mas que muitas vezes ainda canta do mesmo jeito aquela mesma canção dos anos 80. Aquela mesma cantada pelos nossos pais. A canção dos yuppies filhos de hippies

E nós, que não somos nem yuppies e nem hippies, somos o quê? Somos quem?

terça-feira, 18 de março de 2014

Não se trata de chamar a artista de diva

Não se trata, portanto, de um discurso que ressalta as qualidades de um artista como se ele fosse imortal. Eu fui convencido a falar, nesse momento, sobre carne e osso. Mas isso também não do ponto de vista da matéria como incompleta só por não ter sido citado aqui o sensível que cabe nesse corpo. Eu quero falar de corpo e, ao falar disso, eu quero falar sobre tudo o que nele pode caber. Mesmo sabendo que eu jamais conseguiria fazer isso. Mas eu preciso tentar. Porque essa é a tentativa que me cabe nesse momento como espectador da demonstração técnica da bailarina Wilemara Barros na ocasião da comemoração dos seus 50 anos de idade e 40 de carreira. 

Demonstrar tecnicamente um corpo não é necessariamente exibir os atributos e dotes de um artista inquestionável. A demonstração técnica de um corpo treinado por anos dentro de uma técnica fechada como a técnica clássica não significa necessariamente exibir-se numa ideia fechada de demonstração técnica, que tem como característica principal mostrar algo a quem quer ver como se faz aquela determinada coisa, ou mesmo exibir-se virtuoso. E aqui, como alguém que não quer fazer juízo de valor, não falo de virtuose como algo necessariamente ruim. Se um dia nos foi colocado que virtuosismo e arte eram a mesma coisa, isso é responsabilidade de quem inventou isso, e não do virtuosismo.

O virtuosismo não está apenas no corpo. Nem tampouco no balé. Ele pode estar até mesmo em discursos embasados e inquestionáveis. Por isso demonstrar técnica não é apenas demonstrar técnica. E nem técnica é necessariamente uma ideia fechada de técnica como a maioria de nós pensamos. Técnica não é só balé. E balé não é só técnica. Wilemara contou histórias. E o ato de contar histórias exige rigor técnico. E nisso também pode ser vista alguma virtuose. Porque não só me sensibiliza a demonstração. Ela pode me atrair em outros sentidos, até mesmo além do encontro ocorrido. Chegando a ser apaixonante, inclusive. Através da singularidade de quem conta. 

Se a ideia de artista inquestionável é fruto de um mesmo lugar onde o virtuosismo era o ponto principal do fazer artístico, o despir-se da imagem soberana, hoje em dia, também pode servir de objeto para admiração. E isso não é culpa do artista. E não deve ter aqui, necessariamente, algum juízo de valor nesse exato momento, onde determinados eventos não são do controle de quem faz. Isso vem do modo como nós viemos nos construindo enquanto sociedade. Mas, por outro lado, cabe ao artista saber se ele tira ou não proveito disso, se ele questiona isso, e de que forma ele o faz. Ou mesmo como ele se coloca diante disso. 

Não tem a ver com Wilemara Barros o fato de ela ser conhecida e reconhecida como Diva Wila. Toda a singularidade da sua elegância misturada ao seu despojamento, características às vezes nitidamente opostas, já foram entronizadas e colocadas em um lugar espetacular por muitas pessoas, como se suas características agora servissem de objetos de satisfação do público. E esse público não é, necessariamente, aquele que vai aos teatros assisti-la dançar, mas aquele que a acompanha em todos os outros lugares por onde ela transita. 

O que eu gostaria, nesse momento, é tentar me desfazer desse vedetismo. Inclusive porque ele vai contra a toda experiência vivida naquela demonstração. Eu quero me desfazer da facilidade de enxergar o mais espontâneo gesto da artista como característica extraordinária para dar lugar a enxergar o mais espontâneo gesto da artista como o mais espontâneo gesto da artista. E reconhecer o valor disso tentando ao máximo me desfazer da carga simbólica que isso carrega. E enxergar nesse gesto espontâneo também a artista, porque o seu gesto é também o seu corpo. E a espontaneidade da artista não é mais a espontaneidade da artista, mas a espontaneidade é a própria artista. 

Ao falar sobre o espetáculo De-vir, da Cia. Dita, coreografado e dirigido por Fauller, ela diz que o devir é ela própria. Assim ela nunca está velha para dançar o espetáculo, estreado em 2002 e dançado até hoje. Porque, como performer, o corpo e a obra não se separam. Um existe por conta do outro. E esse parece ser também o seu pensamento sobre as diversas técnicas que a compõem, pois elas não estão dissociadas de sua dança, de sua criação e de sua vida. E assim como tudo, elas também estão em devir. E assim, eu me pergunto: são as técnicas que a compõem ou seria ela que compõe as suas técnicas? 

Eu quero enxergar nas diversas técnicas espontaneidade. Técnicas que, independente de avaliações alheias sobre a sua importância, sobre o seu estimulo intelectual ou mesmo a sua exigência física, estejam livres para serem, para estarem em transformação o tempo todo, para que consigam alcançar aquilo que for necessário. Porque o fazer técnico, o fazer artístico e o fazer-se gente podem vir do mesmo lugar.


sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Entre é um lugar de estar entre

Entre um espaço fixo e outro, existe um entre. E esse entre é o que é necessário para que dois espaços fixos, por exemplo, aconteçam como dois espaços distintos. Espaços que podem até se relacionar, mas que são individualmente dois espaços diferentes, com características próprias.

O entre é um lugar onde não se fixa. É um lugar de transição. É o lugar que está entre a chegada e a saída, entre uma mudança e outra. O entre, afinal, é um entre. E estar entre é, no final das contas, algo que não tem fim. Estar entre é estar entre e pronto. O entre é o entre.

Na encenação Um lugar para não ficar, de Dyego Stefann, Fátima Muniz e Poeta Rasta, com orientação de Fran Teixeira, o entre tem uma espécie de foco sobre ele. Ele está em evidência. Uma linha no meio, entre duas extremidades, demarca o seu território. E, entre esse lugar de estar entre, está o público, que observa os dois espaços fixos existentes, cada um em uma extremidade, e o entre entre esses dois espaços. Nesses espaços, existem duas figuras fixas, que parecem anunciar uma possível relação a se estabelecer daqui a pouco, principalmente pelo material que elas têm com elas: de um lado, um homem com um palito de dente e, do outro, uma mulher com balões. E o acontecimento, nesse tempo, se torna a expectativa que fica no que virá, mas que nunca vem.

Um som pontual, um bip seguido de outro, com um silêncio no meio, faz com que um bip só seja um bip por haver, entre um bip e outro, um entre de silêncio. E entre um bip e outro, pode ser perceptível a passagem do tempo. E é essa a atmosfera do lugar. Um lugar de permanência em meio a passagem de tempo.

Até que no entre, surge uma figura. Uma figura também transitória, que vai de uma ponta a outra e faz mover o que parecia imóvel. Indo de um espaço fixo a outro, transformando o próprio corpo e transformando os dois espaços. E um outro tipo de relação vai se estabelecendo entre os dois lugares, sempre possibilitado pelo entre, sempre ligados por esse entre, sempre utilizando o entre como lugar de encontro, como lugar onde é possível levar e trazer algo.

A ideia de entre parece óbvia. Porque o entre é óbvio. O entre sempre será óbvio, porque sempre haverá o entre. No entanto, construir uma obra a partir da ideia de colocar o entre como o lugar principal, possibilita uma experiência diferente diante do acontecimento. Sendo o mais importante não o fato acontecido, mas o ato de estar acontecendo. E estar acontecendo é uma ação que é possibilitada pela existência do entre. Encenar isso é, de alguma forma, fazer do teatro o lugar da ação. Como ele sempre é. Porque o teatro é um lugar de ação. Mas, a partir desse olhar possibilitado pelo entre, é dado ao teatro um lugar principal dessa ação de acontecer. E a ação se torna protagonista na linguagem teatral. Nesse caso, a ação pura, simples, por ela mesma.

Ao final, os intérpretes saem de seus lugares e ocupam uma sala. Eles entram. E lá eles permanecem fixos. O lugar entre eles não é mais demarcado. Apesar de ainda existir um entre, não é mais dado a ele o mesmo posicionamento de antes, a mesma importância, apesar de ele ser sempre importante. E essa falta de entre ocasiona a falta de transição entre as ações. E então, entre eles não acontece mais nada. É como se o entre, apesar de existir, não existisse mais. E então a palavra entre pode ganhar um novo significado: o do verbo entrar. Entrar e estar entre eles. Ou não. Depende da escolha do público. Que também pode escolher o tempo que ficará ainda com a performance. Porque ela só acaba no momento em que não existir mais quem fique. E aqui, nesse segundo momento, quem ganha importância é a ideia de permanência. Ou não.

(Foto: Toni Benvenuti)

domingo, 3 de novembro de 2013

Carol Anne vai ou não vai para a luz?


O que mudou de 1982 até agora? Como estar diante de uma obra cinematográfica estreada em 1982, repleta de efeitos especiais que dificilmente seriam usados nos dias de hoje se fossem para proporcionar ao espectador uma experiência parecida com a que as pessoas de 1982 tiveram?

O que é uma obra datada? Como dizer que algo é ou não é datado? Como saber que o que eu produzo hoje será ou não será datado? Isso é uma preocupação pertinente?

Existe uma frase atribuída à Elis Regina que diz o seguinte: "A longevidade do disco é uma coisa que pode servir de testemunha de defesa, como também pode lascar uma condenação histórica". Se trocarmos a palavra disco por filme, provavelmente também teremos as mesmas duas possibilidades: defesa ou condenação. Diversos aspectos podem ser encontrados de maneiras diferentes numa obra que atravessa o tempo. Podemos questionar éticas e estéticas, e até mesmo esses questionamentos podem se modificar de pessoa para pessoa. O fato é que a experiência de estar frente a um filme de 1982 em 1982 e agora em 2013 são experiências completamente diferentes. Isso mostra o quanto uma obra, mesmo fechada, se modifica, não exatamente por ela mesma, mas pela sua presença nas passagens de tempo. Ela sempre estará em modificação enquanto existir, porque tudo ao redor se modifica. Os públicos mudam, as culturas mudam, as tendências mudam, as técnicas mudam, as tecnologias mudam, as ideologias mudam e assim por diante.

Quem não viu Poltergeist – o fenômeno no seu período de estreia, não vai poder assistir, nos dias de hoje, ao filme do mesmo modo em que ele foi assistido naquele tempo. Portanto, o público atual não deverá ter a mesma recepção, bem como a mesma expectativa do público daquela época. A experiência de, por exemplo, rir de um efeito especial que hoje em dia não faz mais o mesmo efeito aterrorizante que fazia antes pode não ser culpa da obra, mas pode nos apontar o quanto estamos cristalizados na ideia de que Poltergeist é um filme de terror. Novamente eu pergunto: o que é uma obra datada? O fato de algo não funcionar hoje em dia do mesmo modo que funcionou tempos atrás é o que caracteriza uma obra como datada? Talvez não seja o espectador que esteja datado? O que é um espectador datado? E o que caracteriza, afinal, um filme de terror? Quem inventou o termo e como nos foi aplicado o seu modo de usar? Como isso em nós?

Por conta dessas questões, além de outras, percebo que o filme de Tobe Hooper – e, segundo lendas, também dirigido em sua maior parte pelo seu produtor Steven Spielberg –, com roteiro de Mark Victor, Matthew F. Leonetti, Michael Grais e Steven Spielberg, ainda continua atual. Porque soube se modificar e, ainda sim, não deixar de apontar o quanto estamos influenciados pelas estruturas de poder que nos rodeia.

O filme começa com o hino nacional americano. Em seguida mostra o personagem de Craig T. Nelson, o pai de família Steve Freeling, dormindo na frente da TV. E então a TV sai do ar e Heather O'Rourke, a pequena Carol Anne, faz seu primeiro contato com ela. A partir daí, diversos fenômenos sobrenaturais começam a acontecer, até o dia em que Carol Anne é sugada pelo seu armário e levada a um lugar aparentemente imaterial, onde só a televisão serve como meio de comunicação entre ela e a família.

Então a perfeita família americana, de um pai que tem emprego fixo e lê a biografia de Ronald Reagan, se vê completamente ameaçada em sua estrutura. A tranquilidade da casa não é mais intimidada por uma simples desavença entre vizinhos tipicamente americana, mas por conta de outros tipos de ataque, vindos do além-mundo.

A presença da televisão é bastante forte, inclusive nos cortes abruptos que ocorrem no decorrer do filme, que muito lembram mudanças de um canal para outro. Além disso, são exibidos nas TVs do filme, bem como no próprio filme, símbolos americanos, alguns bastante evidentes e outros menos. Há também a presença da câmera como objeto de estudo da equipe de paranormais de Beatrice Straight e o modo como a paranormalidade é associada ao sensacionalismo midiático – por exemplo, quando a personagem de Zelda Rubinstein se coloca diante da câmera dos paranormais como uma celebridade. A forte presença da propaganda de produtos durante todo o filme também é algo que parece produzir a possibilidade da alienação do espectador de televisão e do espectador do filme Poltergeist. Mas nada me produziu mais questão que a cena em que Carol Anne está assistindo à TV fora do ar e sua mãe, Diane, interpretada por JoBeth Williams – que está muito bem no filme –, diz que aquilo faz mal à visão da filha e muda o canal para outro, onde estão passando imagens de guerra.

Poltergeist, afinal, foi feito como um filme propagandista ou anti-propagandista do modo de vida americano? Ou as duas coisas? Ou nenhuma delas?

Quem ataca, é a televisão? É o próprio sonho americano, alimentado pela mídia americana e pelo governo americano, que se volta contra si mesmo? É a mania de perseguição americana – e é por isso que o modo que o horror acontece no filme é tão infantilizado? Ou é porque a perfeição americana não poderia deixar de ser ressaltada, mesmo num filme onde ela é colocada em questão? E que esse modelo de vida é tão importante que não deve ser deixado, apesar de tudo? Afinal, ao final de tudo é a família que vence.

Mas é isso mesmo? Ao final de tudo, é a família que vence realmente?

Seja como for, o fato é que o tal modelo de vida americano e a sua perfeição são colocados fora de ordem. E isso serviu, em 1982, como um produto cinematográfico de entretenimento para toda a família americana, cheia do medo do comunismo, em plena Guerra fria. Mas, e nos dias de hoje? O filme nos serve como o quê? 

Hoje em dia, Poltergeist é um filme propagandista ou anti-propagandista do modo de vida americano? Ou as duas coisas? Ou nenhuma delas?

A obra parece se mostrar dúbia, não sei se durante todo esse tempo. De alguma forma, essa dubiedade enriquece o seu entorno, possibilitando, no mínimo, dois pontos de vista extremos e milhares de discussões acerca desses dois. E isso pode também, enquanto a obra durar, "servir de testemunha de defesa, como também pode lascar uma condenação histórica". Milhares de vezes. Enquanto a obra durar.