terça-feira, 18 de março de 2014

Não se trata de chamar a artista de diva

Não se trata, portanto, de um discurso que ressalta as qualidades de um artista como se ele fosse imortal. Eu fui convencido a falar, nesse momento, sobre carne e osso. Mas isso também não do ponto de vista da matéria como incompleta só por não ter sido citado aqui o sensível que cabe nesse corpo. Eu quero falar de corpo e, ao falar disso, eu quero falar sobre tudo o que nele pode caber. Mesmo sabendo que eu jamais conseguiria fazer isso. Mas eu preciso tentar. Porque essa é a tentativa que me cabe nesse momento como espectador da demonstração técnica da bailarina Wilemara Barros na ocasião da comemoração dos seus 50 anos de idade e 40 de carreira. 

Demonstrar tecnicamente um corpo não é necessariamente exibir os atributos e dotes de um artista inquestionável. A demonstração técnica de um corpo treinado por anos dentro de uma técnica fechada como a técnica clássica não significa necessariamente exibir-se numa ideia fechada de demonstração técnica, que tem como característica principal mostrar algo a quem quer ver como se faz aquela determinada coisa, ou mesmo exibir-se virtuoso. E aqui, como alguém que não quer fazer juízo de valor, não falo de virtuose como algo necessariamente ruim. Se um dia nos foi colocado que virtuosismo e arte eram a mesma coisa, isso é responsabilidade de quem inventou isso, e não do virtuosismo.

O virtuosismo não está apenas no corpo. Nem tampouco no balé. Ele pode estar até mesmo em discursos embasados e inquestionáveis. Por isso demonstrar técnica não é apenas demonstrar técnica. E nem técnica é necessariamente uma ideia fechada de técnica como a maioria de nós pensamos. Técnica não é só balé. E balé não é só técnica. Wilemara contou histórias. E o ato de contar histórias exige rigor técnico. E nisso também pode ser vista alguma virtuose. Porque não só me sensibiliza a demonstração. Ela pode me atrair em outros sentidos, até mesmo além do encontro ocorrido. Chegando a ser apaixonante, inclusive. Através da singularidade de quem conta. 

Se a ideia de artista inquestionável é fruto de um mesmo lugar onde o virtuosismo era o ponto principal do fazer artístico, o despir-se da imagem soberana, hoje em dia, também pode servir de objeto para admiração. E isso não é culpa do artista. E não deve ter aqui, necessariamente, algum juízo de valor nesse exato momento, onde determinados eventos não são do controle de quem faz. Isso vem do modo como nós viemos nos construindo enquanto sociedade. Mas, por outro lado, cabe ao artista saber se ele tira ou não proveito disso, se ele questiona isso, e de que forma ele o faz. Ou mesmo como ele se coloca diante disso. 

Não tem a ver com Wilemara Barros o fato de ela ser conhecida e reconhecida como Diva Wila. Toda a singularidade da sua elegância misturada ao seu despojamento, características às vezes nitidamente opostas, já foram entronizadas e colocadas em um lugar espetacular por muitas pessoas, como se suas características agora servissem de objetos de satisfação do público. E esse público não é, necessariamente, aquele que vai aos teatros assisti-la dançar, mas aquele que a acompanha em todos os outros lugares por onde ela transita. 

O que eu gostaria, nesse momento, é tentar me desfazer desse vedetismo. Inclusive porque ele vai contra a toda experiência vivida naquela demonstração. Eu quero me desfazer da facilidade de enxergar o mais espontâneo gesto da artista como característica extraordinária para dar lugar a enxergar o mais espontâneo gesto da artista como o mais espontâneo gesto da artista. E reconhecer o valor disso tentando ao máximo me desfazer da carga simbólica que isso carrega. E enxergar nesse gesto espontâneo também a artista, porque o seu gesto é também o seu corpo. E a espontaneidade da artista não é mais a espontaneidade da artista, mas a espontaneidade é a própria artista. 

Ao falar sobre o espetáculo De-vir, da Cia. Dita, coreografado e dirigido por Fauller, ela diz que o devir é ela própria. Assim ela nunca está velha para dançar o espetáculo, estreado em 2002 e dançado até hoje. Porque, como performer, o corpo e a obra não se separam. Um existe por conta do outro. E esse parece ser também o seu pensamento sobre as diversas técnicas que a compõem, pois elas não estão dissociadas de sua dança, de sua criação e de sua vida. E assim como tudo, elas também estão em devir. E assim, eu me pergunto: são as técnicas que a compõem ou seria ela que compõe as suas técnicas? 

Eu quero enxergar nas diversas técnicas espontaneidade. Técnicas que, independente de avaliações alheias sobre a sua importância, sobre o seu estimulo intelectual ou mesmo a sua exigência física, estejam livres para serem, para estarem em transformação o tempo todo, para que consigam alcançar aquilo que for necessário. Porque o fazer técnico, o fazer artístico e o fazer-se gente podem vir do mesmo lugar.