quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Entre a órbita e a navegação


O fato é que eu estou diante de uma tela. A disposição frontal, de estar diante de, se estabelece desde o exato momento em que eu entro na sala e avisto as cadeiras. Ali é o lugar onde eu devo sentar. Esse código é seguido à risca por todos os espectadores ali presentes, que se sentam e que observam, na bidimensionalidade do quadro, alguns sinais. Através de uma projeção sobre um plástico branco, existe uma contagem regressiva, de mais ou menos cinco minutos, que revela que CASSINI: PLAYBACK vai começar. Então eu aguardo. Um som, contínuo e um tanto noise, demarca o regresso desse relógio. Vestígios geométricos surgem. Alguns quadrados e círculos também aparecem e somem calmamente, geralmente preenchidos das cores vermelha, verde e azul. E também outra frase aparece, some e reaparece várias vezes. Ela me diz: “respire profundamente”. São estas as instruções. E como quem especta, estando numa relação de estar diante de, eu sigo respirando e aguardando.

Esse antes de começar diante da tela, que sugere que eu me prepare para a enxurrada que vem a seguir, é, antes de ser prólogo e antes de ser preparação, a própria criação da expectativa de quem é espectador e se coloca na condição de estar diante de algo. O relógio me faz lembrar a linha sequencial do tempo inventado. E quando ele chega ao zero, aí é quando CASSINI: PLAYBACK efetivamente começa, embora ele já tenha começado.

Essa proposição é a terceira de um projeto chamado CASSINI, desenvolvido como uma pesquisa de Gabriel Matos no Teatro Suspenso, grupo em que ele e Toni Benvenuti participam desde a sua criação, em 2009. CASSINI propõe a criação de diálogos na esfera caótica da comunicação, sendo o título do projeto uma alusão a um satélite em órbita no planeta Saturno, correspondente ao Caos na mitologia grega. Contando com outras peças em diferentes mídias e linguagens e na fricção entre elas, CASSINI – com o título escrito assim mesmo, nervosamente em caixa alta – propõe pensar a linguagem teatral na sua expansão intermídia. Mas como isso acontece se, até então, no momento em que eu entrei para me relacionar com essa proposição chamada CASSINI: PLAYBACK, eu ainda estou no diante de?

Quando a contagem regressiva termina, Gabriel Matos, com os lumens do projetor, compõe com a tela uma coreografia repleta de espaços e lacunas a se preencher (ou não), transformando a bidimensionalidade em outras dimensões. O caráter passivo do espectador, aos poucos, é convocado à interação. E então eu, como quando estou à frente do computador, posso me deixar (ou não) interceptar pelo caráter unilateral da passividade, tal como acontece geralmente na nossa relação com a televisão. Portanto, a decisão está no público. Embora todos os sinais me convoquem e me provoquem à expansão e à busca de me desmembrar por abas e mais abas, abrindo campos e conexões, eu posso optar por assistir passivamente.

Será que eu posso optar por apenas assistir passivamente?

Anúncios de antivírus. Telejornais. Telepropagandas. Virais. Memes. Facebook. Youtube. Whatsapp. Slogans. Hits. CASSINI: PLAYBACK é uma composição audiovisual feita na multiplicidade de sons e imagens disso tudo. Gabriel, como numa opereta, não apenas dubla, mas compõe com todas essas informações, deixando que elas também componham com ele. A tela perde o centro, a geometria euclidiana perde forma para a geometria fractal, os pontos de vista se ampliam, as existências se multiplicam, as perspectivas se misturam, as proporções se perdem e assim a peça também perde o humano que, embora seja lembrado na sua consistência – por ser de carne e por estar em cena –, também se desorganiza no caos e perde a sua importância enquanto humano.
     
Isso é percebido se eu optar por apenas assistir passivamente?

Até que, num determinado momento, a peça, que não se divide por cenas, mas por momentos de múltiplas abas, se modifica para um momento de canal. As abas se fecham e tudo escurece. No centro, um quadrado pisca nervoso a cor vermelha. Aqui, o centro é reativado. Então, em seguida, uma única aba surge, no centro, onde Gabriel está. Ele, dentro de uma forma retangular ampliada no centro, me faz experimentar novamente a condição de estar diante de algo. Ali, diante de mim, só existe ele. Ele e o seu playback.

Se eu tiver optado por ir além de assistir passivamente: como se dá esse retorno ao estar diante de algo?

Até que novamente o espaço se transforma, agora em duplo, onde, de um extremo lado palavras e mais palavras formulam diversas frases que às vezes se misturam em manchas pretas, e do outro extremo o intérprete dá continuidade ao seu playback na dublagem de dezenas de vídeos. No centro, surgem formas geométricas a se repetir, como se estivéssemos diante de um tríptico que, na rapidez de sua mudança, me faz experimentar novamente a relação entre as múltiplas abas.

Ao compreender o projeto como uma ação de orbitar pelo Caos, é também possível perceber as crises da comunicação na sua fase intermidiática. E é principalmente a partir da transição-relação televisão-internet que CASSINI: PLAYBACK se dá. A televisão, que não deixou de existir por conta de internet e que tenta se reconfigurar o tempo todo na tentativa de se expandir, e a internet, que não é totalmente experimentada na sua complexidade também pela maneira que a maioria de nós estamos acostumados a lidar com a hegemônica TV.

Será que eu posso optar por apenas assistir passivamente? Sim, talvez. Isso é percebido se eu optar por apenas assistir passivamenteNão sei. Se eu tiver optado por ir além de assistir passivamente, como se dá esse retorno ao estar diante de algo? Esta é uma questão importante sobre autonomia, de modo que essa proposição de Gabriel Matos e do Teatro Suspenso me faz refletir ativamente acerca do modo como eu opero enquanto espectador, onde eu é possível ser provocado o tempo todo nessa relação intermidiática repleta sensorialidade (entre a televisão e a internet, entre a bidimensionalidade e a tridimensionalidade, entre a geometria euclidiana e a geometria fractal etc.). Mas será que é possível apenas assistir passivamente? Todas as questões do trabalho estão na maneira como eu me relaciono com ele?

Há, nessa transição-relação televisão-internet, uma transposição nas relações de comunicação. Simplificar essas relações como apenas ligações entre emissor e receptor com ruídos na mensagem não dá conta do que é possível na vasta imensidão do espaço. Nesse sentido, o trabalho aqui em questão, de certa maneira, me propõe que eu encontre reorganizações e rearranjos na condição de espectador se eu quiser me conectar com ele de maneira expandida.

* * * * *

Em Gif, glitch bit! a palavra navegar exerce uma importância tão forte quanto orbitar para CASSINI. Embora os dois verbos tenham sentidos aproximados, cada um deles têm características próprias. O orbitar de CASSINI é como o transladar de um satélite ao redor de um planeta caótico. O navegar de Gif, glitch bit! pressupõe oceanos e movimentos para além de estar ao redor.

Do lado de fora é possível ouvir uma música alta que chega para fora do espaço. Tempos depois, o espectador é convidado a entrar. E é então que ele se descobre como participante.

Gif, glitch bit! é uma instalação dançada desenvolvida no laboratório de dança do Porto Iracema das Artes em 2015 como um projeto de Felipe Damasceno e William Pereira Monte. A tutoria do projeto – palavra esta designada pelo Porto Iracema a um artista escolhido pelos membros do projeto para participar como colaborador / orientador etc. do processo – foi exercida por Sheila Ribeiro; e também colaboraram com o processo os artistas Caroline Holanda e David da Paz.

Aqui, todo o espaço é recepção. Ao entrar, poderíamos escolher qualquer lugar para ficar. Estávamos dentro de um quadrado branco, bastante poluído por emaranhados de fios, projetores, ventiladores, diferentes materiais, além de muitas pessoas, estampas e cores distintas. O público se olha sem muito saber o que fazer. A vontade é de ficar de fora para observar o quadro. No caso, como não havia quadro, o centro. Então as pessoas se apoiam nas paredes. Até que projeções surgem. E as pessoas vão para o centro. A coreografia já havia começado.

A música, composta por Wladimir Cavalcante, age na criação da ambiência. Projeções surgem, para além das paredes, também no chão. E o bidimensional do vídeo se tridimensionaliza nos corpos. Vídeos com palavras e tags importantes para a cultura digital, vídeos mostrando diferentes formas de deslocamento do Porto Iracema, onde o processo se desenvolveu, até ali: o Galpão da Vila, onde agora o trabalho se apresentava. Selfies dentro do táxi ou em cima da bicicleta, street view do Google Maps, várias maneiras de fazer mapas. Mapas que também se tridimensionalizam na imagem através de inúmeras formas e possibilidades de leituras, abandonando a ideia de plano.

Até que os intérpretes – será que eu posso chamá-los de intérpretes? – ou propositores do trabalho, que estavam ao nosso lado desde o começo, normalmente, olhando as projeções como todos nós, começam a dançar. Mas antes eles já não estavam dançando? E nós, participantes, também não estávamos?

Gif, glitch bit! age como um desencadeamento de uma série de estranhamentos desde não saber como se portar na obra até descobrir possibilidades de conexão dentro dela.

Felipe e William não apenas se movimentam por todo o espaço, mas também movimentam o espaço, enquanto os outros participantes, muito tímidos e ainda presos ao paradigma de ser espectador, não têm onde se apoiar, a não ser na incerteza do seu agir enquanto participador ativo.

Nas projeções, gifs e mais gifs. Repetições. Possibilidades de conexão entre figuras diferentes e momentos distintos. Os propositores agem nessa relação com o espaço onde se pode navegar. A tecnologia como suporte não é mais possível ou visível, porque o trabalho se dá nas correlações, na destruição das hierarquias. Aqui o centro não existiu nunca, a não ser pelo desejo dos participantes em serem espectadores ao adentrar o espaço. E agora eles estão desamparados por não saber como dançar.

Em Gif, glitch bit! o espectador não poderá jamais ser espectador porque não está diante de um espetáculo, mas, ao contrário, está em um lugar onde ele possa navegar e propor ativamente. Portanto, esse participante, antes mesmo de ser convocado a participar, é exigido, na surpresa da navegação, que ele se reorganize e se rearranje enquanto espectador para outra maneira de compor naquela dramaturgia.

Essa surpresa, que é também o risco e o perigo – e também a importância – de Gif, glitch bit! possui, ao mesmo tempo, a capacidade de nos fazer perdidos e conectados nessa navegação.

Se eu tiver como parâmetro uma relação padronizada entre obra e público, o perder a conexão seria um problema? Certamente, sim. Aqui, nenhuma relação parece padronizada. Então, como uma conexão de internet que é interrompida do seu fluxo, como numa falha glitch, a perda da conexão é possível e permitida. Como no emaranhado de fios, tudo está à mostra. Não há mistério. Não há um lugar para onde olhar. Pode-se olhar para qualquer lugar.

Por que esse modo de se relacionar, presente e acessado pelas nossas vidas no nosso dia-a-dia, ainda gera crises na relação com seu participador (que se sente confortável na condição de espectador?). Onde será que a separação entre vida e obra se dá primeiramente?

Até que frases surgem nas projeções sugerindo que façamos algo. Pessoas se entreolham. Algumas arriscam mudar de lugar, embora a maioria esteja engessada. Outras se movimentam e começam a dançar, embora sem deslocamento. Então imagens lisérgicas surgem no espaço. A música se intensifica num jogo de ,, mi,, sol, lá, si que se quebra na repetição desse paradigma, somando-se a quebra de inúmeros paradigmas aqui quebrados. Então algum dos propositores entrega um projetor a alguém, que decide onde vai iluminar e projetar. E então, como numa crescente, quando na instalação se instaura uma necessidade de que não permaneçamos mais tão parados, tudo apaga de uma vez. Tudo. E a luz acende. E acaba?

Algo igualmente difícil na relação com essa obra está no findar da ação. A dificuldade aqui relatada não se autoproclama difícil como defeito, ao contrário, se chama difícil pelo que nos está encrustado enquanto percepção construída.

Esse risco e perigo de Gif, glitch bit! de não preparar os seus participantes com âncoras, deixando que eles naveguem livremente, confere ao trabalho a coragem de conferir autonomia a quem chegar na instalação. E, sabendo que a autonomia é um risco para ambos os lados, a importância do trabalho é também a de questionar onde os sensos foram inventados.