segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Uma cadeira é uma cadeira?


Uma cadeira é uma cadeira. Uma cadeira em cena é uma cadeira em cena. E uma cadeira em cena é uma cadeira? Sim, pode ser. Mas pode também não ser. Mas, mesmo não sendo, será uma cadeira. Mas, para além de cadeira, pode assumir outros papéis, desempenhar outras funções que não as de uma cadeira em condições normais de uma cadeira.

Uma cadeira pode fugir à regra. Uma cadeira pode ir muito além da sua condição utilitária de cadeira. Uma cadeira pode negar a moderna ideia de funcionalismo. E então uma cadeira poderá ser um móbile. Uma cadeira pode, sim, ser colocada na condição de um móbile. Por que não? Um objeto que só faz sentido em movimento. Ou mais que isso: uma cadeira pode ser um objeto que só é vivo em relação com alguém. E isso pode estar em cena. Uma cadeira como um objeto que pode ser outros objetos sem deixar de ser o que ele é. Uma cadeira não como um elemento usual, mas uma cadeira como um instrumento múltiplo, e fugindo também à ideia de ser uma escada ou um trampolim para números. Mais que isso: uma cadeira pode ser parte de uma relação. E não cabe à cadeira decidir isso. Mas ela pode estar em relação mesmo assim. E é isso o que acontece no espetáculo A cadeirinha e eu, de Silvia Moura. Um espetáculo que acontece desde 1994 e que não é só de Silvia Moura, mas que é da cadeirinha também. Sim, porque, além de tudo, uma cadeira, sendo ou não uma cadeira, não é uma cadeirinha. E uma cadeirinha é uma cadeirinha. Uma cadeirinha não é e nunca será uma cadeira: será sempre uma cadeirinha, mesmo quando não for uma cadeirinha. É importante deixar isso claro: que a cadeira de A cadeirinha e eu não é uma cadeira, é uma cadeirinha.

É realmente difícil identificar esse trabalho com um solo. A cadeirinha não é utilizada, a cadeirinha é colocada na condição também de intérprete. E assim as duas contracenam. Quem vai dizer que não? As duas existem. E as duas, em relação, se relacionam com o público de maneira direta, sem fingimentos. Em estado de apresentação e não de representação. Elas não querem enganar ninguém. Uma delas já tem cabelos brancos e a outra tem as madeiras frágeis, mas nem por isso elas deixam de serem crianças. E elas são. Assim: sem fingimentos. Todo mundo sabe que elas são adultas. Mas quem é quem vai dizer que é mentira que elas são crianças se todos ali são cúmplices? Quem vai desmentir tudo se a relação que elas criam com a gente, do público, é a de uma brincadeira? E todos nós queremos brincar. O que nós mais queremos ali, com elas duas, é brincar. A brincadeira é eterna. É tradicional. É intrínseca a todas as idades. E é por isso que esse espetáculo ainda é vivo apesar de tanto tempo. De uma estrutura super simples que é pautada na pura e simples brincadeira, no faz-de-conta. E é mesmo um faz-de-conta. Ninguém ali se ilude. Todos sabem que é uma brincadeira. Todos sabem que é um espetáculo. Todos fazem de conta. E é através dessa sinceridade que é possível chegar e falar, se comunicar.

(É preciso abrir um parêntese aqui para dizer que eu não vou colocar que "A cadeirinha e eu tem uma estrutura que ainda funciona", porque eu quero fugir desse funcionalismo que às vezes insiste em estar presente em praticamente tudo. Porque a gente foi realmente condicionado a isso de alguma maneira. Até na arte. Então eu não quero falar desse modo aqui, ainda mais sobre uma obra que a própria cadeirinha, enquanto intérprete, dança há sei lá quantos anos. Eu a ofenderia se eu falasse dela e da obra que ela participa de modo funcional, justamente por ela ser o que ela é: um sujeito que nega ser sujeito; algo que não é, mas que está em estado de sempre poder ser. Porque nós sabemos que, para ser intérprete de A cadeirinha e eu, a cadeirinha precisou não ser nada funcional. Isso não é uma crítica minha ao modernismo e ao seu funcionalismo, é uma opção de escrita nesse momento. Porque às vezes é preciso fugir desses parâmetros utilitários que nem sempre são por opção, mas por falta de espaço de livre-pensamento. E saber que em 1994 uma cadeirinha fugiu a tudo isso, à frente do seu tempo e às pessoas do seu tempo, é surpreendente, mesmo em um espetáculo com começo, meio e fim. Porque um espetáculo com começo, meio e fim não é, necessariamente, uma coisa ruim. Isso se for por opção e não por enclausuramento. – Vale ressaltar que também pode ser muito ruim essa necessidade de profanação o tempo todo. Mesmo que isso seja entendível, por conta do aprisionamento gerado ao longo do tempo, essa necessidade acaba sendo, de alguma maneira, também funcional. – Então, A cadeirinha e eu, do ponto de vista da opção por ser linear, sendo uma obra que nega o funcionalismo, também se adéqua a ele; para contar, de maneira simples, a história simples de gente comum; numa gramática simples, desprovida de ostentação técnica ou visual, com ações simplificadas, proporcionando a documentação de algo que ainda é pertinente desde 1994 e que, provavelmente, vai ser ainda durante muito tempo. Temos, através da dimensão do ciclo, no senso comum da ideia cíclica, uma obra que se aproxima do universo de toda e qualquer pessoa, afirmando, assim – e também, desse modo, denunciando –,  que, justamente por sermos filhos desse funcionalismo moderno, ainda é preciso negar algumas coisas de dentro para fora e não de fora para dentro, de maneira tão radical. E assim A cadeirinha e eu tem vida longa, se apresentando em todos os lugares e para todos os tipos de público, sendo uma obra que, para ser democrática, precisa estar despida de vaidades e até envolvida de uma certa precariedade e crueza que já são próprias de sua estrutura. Uma ideia de democracia e acesso através de um certo despojamento estético. E, ainda sim, isso não deixará nunca de ser experimental do ponto de vista da linguagem. E é bom que A cadeirinha exista. Porque é preciso. Não do ponto de vista do que é, de fato, preciso. Porque é necessária. Não do ponto de vista do que é, de fato, necessário. Porque é atualíssima. Justamente por ser da maneira que é. Mesmo sendo desde 1994. Porque, ainda hoje, a arte ainda é vista supérflua diante de tanta escassez. Ainda é preciso o feijão e o arroz, e essa fome de comida é que é realmente funcional. E é para combater esse tipo de funcionalismo que é preciso ser preciso. E é bom que exista essa obra e alguém como Silvia Moura que ainda a faça. E Silvia Moura não deixa de ser para as artes cênicas o que Rogério Sganzerla foi para o cinema; e quando ele dizia "somos antiestéticos para sermos éticos", ele talvez não imaginasse que existia alguém como ela.)

Mas se querem saber: A cadeirinha e eu ainda é uma obra que coloca o mundo em questão. É uma obra que coloca a dança em questão. É uma obra que coloca o teatro em questão. É uma obra que coloca a ideia de dramaturgia em questão. É uma obra que coloca todos os conceitualismos em questão. É uma obra que coloca o funcionalismo e a crítica a esse funcionalismo em questão. É uma obra que coloca a mim mesmo em questão. E coloca tudo o que eu escrevi até agora também em questão. (A cadeirinha me diz que é preciso ser paradoxal.) E coloca a vida em questão. E coloca a condição de obra de arte em questão. E é também uma obra que coloca a relação em questão. E as relações todas entre público e obra em questão. Que coloca a ideia de simplicidade e simploriedade em questão. Que coloca em questão o que produzimos e para quem produzimos; e também o que não produzimos e para quem deixamos de produzir. E coloca em questão também tudo o que é novo assim como tudo o que é ultrapassado.

E assim A cadeirinha é mais atual que nunca. E a cada dia que passa se torna mais questionadora de tudo. Como uma pessoa que vai amadurecendo e tomando consciência das coisas que existem no mundo.

Não se trata mais de um espetáculo que aborda o universo feminino e o ciclo da vida, vai além disso. E, da mesma maneira que o objeto cadeirinha foge à regra, que o objeto cadeirinha vai além da sua condição utilitária, que o objeto cadeirinha nega a moderna ideia de funcionalismo, a história contada no espetáculo A cadeirinha e eu foge à regra de ser uma história de gente normal. É uma história que vai muito além da sua condição utilitária de ser uma história de gente normal e nega a moderna ideia de funcionalismo da vida de gente normal  mesmo que essa história seja a história de gente normal. Ela vai além e também nos coloca na condição de se identificar com aquilo que é, apesar da nossa diferença entre si, a nossa própria história. Porque, apesar de tudo, todos nós somos gente normal. A cadeirinha ainda é uma cadeirinha. A cadeirinha é universal.

(Na última cena do espetáculo, Silvia Moura cai no chão como uma morta. E a cadeirinha cai junto dela. Parece que a cadeirinha é algo que todos nós temos também. A cadeirinha é universal.)

A cadeirinha ainda é uma cadeirinha. A cadeirinha é universal.