domingo, 3 de novembro de 2013

Carol Anne vai ou não vai para a luz?


O que mudou de 1982 até agora? Como estar diante de uma obra cinematográfica estreada em 1982, repleta de efeitos especiais que dificilmente seriam usados nos dias de hoje se fossem para proporcionar ao espectador uma experiência parecida com a que as pessoas de 1982 tiveram?

O que é uma obra datada? Como dizer que algo é ou não é datado? Como saber que o que eu produzo hoje será ou não será datado? Isso é uma preocupação pertinente?

Existe uma frase atribuída à Elis Regina que diz o seguinte: "A longevidade do disco é uma coisa que pode servir de testemunha de defesa, como também pode lascar uma condenação histórica". Se trocarmos a palavra disco por filme, provavelmente também teremos as mesmas duas possibilidades: defesa ou condenação. Diversos aspectos podem ser encontrados de maneiras diferentes numa obra que atravessa o tempo. Podemos questionar éticas e estéticas, e até mesmo esses questionamentos podem se modificar de pessoa para pessoa. O fato é que a experiência de estar frente a um filme de 1982 em 1982 e agora em 2013 são experiências completamente diferentes. Isso mostra o quanto uma obra, mesmo fechada, se modifica, não exatamente por ela mesma, mas pela sua presença nas passagens de tempo. Ela sempre estará em modificação enquanto existir, porque tudo ao redor se modifica. Os públicos mudam, as culturas mudam, as tendências mudam, as técnicas mudam, as tecnologias mudam, as ideologias mudam e assim por diante.

Quem não viu Poltergeist – o fenômeno no seu período de estreia, não vai poder assistir, nos dias de hoje, ao filme do mesmo modo em que ele foi assistido naquele tempo. Portanto, o público atual não deverá ter a mesma recepção, bem como a mesma expectativa do público daquela época. A experiência de, por exemplo, rir de um efeito especial que hoje em dia não faz mais o mesmo efeito aterrorizante que fazia antes pode não ser culpa da obra, mas pode nos apontar o quanto estamos cristalizados na ideia de que Poltergeist é um filme de terror. Novamente eu pergunto: o que é uma obra datada? O fato de algo não funcionar hoje em dia do mesmo modo que funcionou tempos atrás é o que caracteriza uma obra como datada? Talvez não seja o espectador que esteja datado? O que é um espectador datado? E o que caracteriza, afinal, um filme de terror? Quem inventou o termo e como nos foi aplicado o seu modo de usar? Como isso em nós?

Por conta dessas questões, além de outras, percebo que o filme de Tobe Hooper – e, segundo lendas, também dirigido em sua maior parte pelo seu produtor Steven Spielberg –, com roteiro de Mark Victor, Matthew F. Leonetti, Michael Grais e Steven Spielberg, ainda continua atual. Porque soube se modificar e, ainda sim, não deixar de apontar o quanto estamos influenciados pelas estruturas de poder que nos rodeia.

O filme começa com o hino nacional americano. Em seguida mostra o personagem de Craig T. Nelson, o pai de família Steve Freeling, dormindo na frente da TV. E então a TV sai do ar e Heather O'Rourke, a pequena Carol Anne, faz seu primeiro contato com ela. A partir daí, diversos fenômenos sobrenaturais começam a acontecer, até o dia em que Carol Anne é sugada pelo seu armário e levada a um lugar aparentemente imaterial, onde só a televisão serve como meio de comunicação entre ela e a família.

Então a perfeita família americana, de um pai que tem emprego fixo e lê a biografia de Ronald Reagan, se vê completamente ameaçada em sua estrutura. A tranquilidade da casa não é mais intimidada por uma simples desavença entre vizinhos tipicamente americana, mas por conta de outros tipos de ataque, vindos do além-mundo.

A presença da televisão é bastante forte, inclusive nos cortes abruptos que ocorrem no decorrer do filme, que muito lembram mudanças de um canal para outro. Além disso, são exibidos nas TVs do filme, bem como no próprio filme, símbolos americanos, alguns bastante evidentes e outros menos. Há também a presença da câmera como objeto de estudo da equipe de paranormais de Beatrice Straight e o modo como a paranormalidade é associada ao sensacionalismo midiático – por exemplo, quando a personagem de Zelda Rubinstein se coloca diante da câmera dos paranormais como uma celebridade. A forte presença da propaganda de produtos durante todo o filme também é algo que parece produzir a possibilidade da alienação do espectador de televisão e do espectador do filme Poltergeist. Mas nada me produziu mais questão que a cena em que Carol Anne está assistindo à TV fora do ar e sua mãe, Diane, interpretada por JoBeth Williams – que está muito bem no filme –, diz que aquilo faz mal à visão da filha e muda o canal para outro, onde estão passando imagens de guerra.

Poltergeist, afinal, foi feito como um filme propagandista ou anti-propagandista do modo de vida americano? Ou as duas coisas? Ou nenhuma delas?

Quem ataca, é a televisão? É o próprio sonho americano, alimentado pela mídia americana e pelo governo americano, que se volta contra si mesmo? É a mania de perseguição americana – e é por isso que o modo que o horror acontece no filme é tão infantilizado? Ou é porque a perfeição americana não poderia deixar de ser ressaltada, mesmo num filme onde ela é colocada em questão? E que esse modelo de vida é tão importante que não deve ser deixado, apesar de tudo? Afinal, ao final de tudo é a família que vence.

Mas é isso mesmo? Ao final de tudo, é a família que vence realmente?

Seja como for, o fato é que o tal modelo de vida americano e a sua perfeição são colocados fora de ordem. E isso serviu, em 1982, como um produto cinematográfico de entretenimento para toda a família americana, cheia do medo do comunismo, em plena Guerra fria. Mas, e nos dias de hoje? O filme nos serve como o quê? 

Hoje em dia, Poltergeist é um filme propagandista ou anti-propagandista do modo de vida americano? Ou as duas coisas? Ou nenhuma delas?

A obra parece se mostrar dúbia, não sei se durante todo esse tempo. De alguma forma, essa dubiedade enriquece o seu entorno, possibilitando, no mínimo, dois pontos de vista extremos e milhares de discussões acerca desses dois. E isso pode também, enquanto a obra durar, "servir de testemunha de defesa, como também pode lascar uma condenação histórica". Milhares de vezes. Enquanto a obra durar.

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