É como se uma palavra me pedisse para ser citada. Mas ela
pode soar inadequada. Ela pode soar perigosa. Porque ela pode ganhar mais de um
significado. E isso pode ser bom. Mas também pode ser ruim. Porque essa palavra
poderia, de repente, ganhar um significado simplório. E isso eu não quero. De
jeito nenhum. Porque não seria justo. Então, se eu não explicar bem direitinho
o que eu quero dizer ao usar essa palavra, ela pode ficar por demais em aberto.
E isso pode ser bom. Mas também pode ser ruim. Esse é o perigo desta palavra. Como,
então, é possível citá-la? Como é possível fazê-la? Como construir o seu
significado? É preciso minúcia. É preciso, talvez, saber de alguns outros
significados da mesma palavra. E é preciso escolher o caminho de construção
desse significado a ser dito, afinal. Um caminho. Não necessariamente uma
chegada pré-estabelecida. Mas um caminho, pelo menos. As primeiras decisões. Os
primeiros pontos de partida. Porque tudo depende da forma como essa palavra
será composta. Muito mais que uma palavra explicada. Mas uma palavra exercida. Talvez
seja preciso admitir o meu processo de chegada nesta palavra para que ela não
atraia muitos riscos a ela. Para que assim, depois, eu possa explanar-me nela e
adquirir outros caminhos que não se fechem num beco sem saída. Para que todos
os riscos não fiquem só em mim, mas sejam divididos abertamente com quem quiser
participar deste texto. Para que eu possa adquirir outras qualidades de
arriscar-me. Para que, então, haja propriedade para falar sobre aquilo que está
no topo. No alto.
O espetáculo Palafita, do Grupo Fuzuê, de autoria de Edmar
Cândido e Eric Vinícius e interpretado por eles dois, parece admitir os seus riscos. Então, para escrever
sobre ele, é preciso que eu aprenda com ele algo sobre a sua composição. Para
que eu também possa compor esse texto. Que é também um estudo. E se faz num
processo de busca.
A palavra que me pede para ser citada é suspensão. Seria difícil
que eu escrevesse sem usá-la, quando, na verdade, este trabalho me parece um
estudo de suspensões. No entanto, é muito difícil falar suspensão porque,
quando essa palavra me vem, eu não quero falar de suspensão, mas eu quero
dizê-la enquanto processo de descoberta. Eu quero encontrar nesta palavra já
batida uma outra que dissesse o que é possível enxergar nesse estudo.
Suspensão poderia trazer ideia de êxtase, de perplexidade,
de pausa, de hesitação, talvez até de incerteza. Talvez até de incompletude,
quem sabe. Mas não. Eu quero falar de suspensão me referindo apenas como algo que
não toca o chão. Dessa forma: limpa e seca. Algo não toca o chão.
Daí, para falar de algo não toca o chão, eu preciso falar
como é esse não tocar o chão. Chegou o momento de admitir os pesos. Então, eu
tenho como sugestão a imagem de uma palafita. Logo assim: dada a mim como
primeira imagem, por ser usada como o título do espetáculo. Palafita. Uma
palafita. Pesada, mas na sua medida de peso ideal. De madeira. Com suas pernas
de madeira. Que tem as suas forças. Mas que tem também as devidas fragilidades
de uma palafita.
É importante dizer que não é a suspensão de uma bailarina
clássica. É a suspensão de uma palafita. Uma palafita sobre um rio. Com estacas
de madeira que a sustentam, que a suspendem. Estacas que são parte dela
enquanto palafita. E uma palafita é aquilo que ela é. Com o seu devido peso.
Uma construção que admite, na sua feitura, o seu processo. E não engana a
ninguém. Ao contrário de uma bailarina clássica, que apesar de também ter
pernas que, de certa forma, a sustentam, está muito mais sustentada numa técnica
que esconde o processo e exibe apenas o produto final. Digo: uma bailarina
clássica, e não uma bailarina com a técnica clássica; mas uma bailarina clássica:
que está construída enquanto bailarina não apenas na técnica, mas também nos
modos de fazer do balé clássico, muito ligados à ideia de ilusionismo e ainda
com bastantes influências do romantismo.
A palafita, ao contrário da bailarina clássica, exibe, na
sua forma, o seu processo de feitura. Uma palafita tem estacas que a sustentam e
que estão ali, naquela obra, admitindo que são estacas que a sustentam. De
madeira. Mesmo que uma palafita seja um produto final, algo nela diz que aquela
construção ainda é processo. Porque ela exibe o seu processo. Sendo ainda um processo,
apesar de já ser um produto final.
Como num estudo que parte da ideia de suspensão, assim,
limpa e seca, o espetáculo Palafita se constrói ao longo de seus pouquíssimos
minutos como se constrói uma palafita. Uma palafita que, exibindo na sua
construção as suas estacas, exibe também na sua forma o seu conteúdo. E aqui
tem-se outra palavra perigosa: conteúdo.
É preciso, para falar de conteúdo, admitir que os
significados da palavra conteúdo são mais de um. Então, é preciso eliminar,
para a construção desse texto, a ideia de conteúdo como assunto. E é preciso
observar conteúdo como uma palavra relativa aquilo que contém. Dentro, acerca. Enquanto
objeto ou produto. Enquanto matéria. Como aquilo que está contido.
E assim, como uma palafita que contém estacas e que exibe na
sua forma aquilo que ela contém, o espetáculo Palafita também exibe o seu
conteúdo na sua forma. De maneira aberta, sem tentativas de esconder. E o mesmo
aconteceu aqui, agora, neste texto: ao falar da palavra conteúdo como uma
palavra que é diferente de assunto. Mas
como uma palavra que pode dizer, de maneira direta, que determinado assunto
está contido em determinada forma. Dando a devida importância da palavra conteúdo.
Como uma palavra que pode falar sobre aquilo que está contido em algo. É possível,
como maneira de exemplificar, que se observe esta imagem: está contida na minha
cabeça algumas ideias. E essas ideias podem ser o conteúdo da minha cabeça. Mas,
por serem um conteúdo, elas não são necessariamente um assunto. Elas são algo.
Palpável.
E, da mesma forma que uma palafita não precisa ter um
assunto, o espetáculo Palafita também não. Ele pode ser aquilo que ele é. A
exibição do seu processo. E a exibição da sua feitura. Como num poema
concretista.
Se uma bailarina que tem a técnica clássica, mas que não
segue os modos de fazer clássicos, decide trabalhar com a sua construção de
corpo como algo a ser contido num produto, aquilo não necessariamente é um
assunto. Mas está lá, contido na sua forma, a admissão do seu conteúdo.
E o espetáculo Palafita, portanto, é assim: um conteúdo de suspensões.
Com admissões de risco. Com admissões de peso. E com admissões daquilo que ele
contém. Com admissões sobre aquilo que ele contém.
Os materiais utilizados são aquilo que eles são. Os corpos
são aquilo que eles são. E eles agem da forma como eles agem. No espaço que
existe ali e que ali é também admitido. E assim é construído ali, naquele
espaço, durante aquele determinado tempo, um trabalho forte. De músculos. De
carne e de ossos. De olhares. De respirações. Onde não são levantadas questões como
perguntas, mas como exibição de materiais. Materiais que expõem forças e
fraquezas. E que, por si só, são o bastante para que se racionalize no corpo
questões que não contém assuntos, mas que contém sensações e desejos.
São construções. São coisas. São suor
de verdade. São pele.
Não caberia na feitura deste trabalho a exibição de grandes truques como forma de iludir um público com a grande força dos intérpretes, porque as suas opções de composição são outras. Não tem a ver com iludir. Não tem a ver com ludibriar. Tem a ver com assumir. Tem a ver com gritar o que acontece. Com descobrir e levantar essas descobertas. Às vezes mínimas. Às vezes grandes. Mas nunca geradas ou movidas a partir da ideia de exibição gratuita de um grande truque.
Ao contrário do que muito é falado sobre técnicas circenses, como técnicas irremediavelmente virtuosas, que contém muito mais do que o necessário para adquirir formas que levantem questões sobre a contemporaneidade e para a contemporaneidade, o Grupo Fuzuê conseguiu descobrir um modo de operar que vai exatamente na contramão disso através da admissão da sua técnica. Na exibição de fato dela e do que ela é. Como técnica circense que se exibe como técnica circense na sua construção. Não se prendendo a ela. Mas encarando a técnica como um modo de jogar e como um modo de compor na cena. Despida de qualquer virtuosismo. Construindo e reconstruindo, naquele lugar de fazer, aquilo que o circo que eles fazem contém. Exatamente como colocar à vista aquilo que parece estar exaurido ao redor. E compor com isso. Nesse esgarçar da técnica com ela e para além dela através dela. Não na execução de uma pegada ou de um passo, mas na construção da obra, na construção dos corpos e da espacialidade que se faz presente no momento em que a obra acontece. Na investigação contínua. Nas descobertas e nas necessidades de descobrir. No hibridismo. Na construção das formas, das texturas, do próprio ato de compor e de estar ali: compondo naquele momento, naquele tempo-espaço. Independente de ser ou não um espetáculo marcado e ensaiado. Porque é um espetáculo que se exibe com a prontidão de algo que nunca está pronto e que está sempre na construção da necessidade em ser feito.
Não caberia na feitura deste trabalho a exibição de grandes truques como forma de iludir um público com a grande força dos intérpretes, porque as suas opções de composição são outras. Não tem a ver com iludir. Não tem a ver com ludibriar. Tem a ver com assumir. Tem a ver com gritar o que acontece. Com descobrir e levantar essas descobertas. Às vezes mínimas. Às vezes grandes. Mas nunca geradas ou movidas a partir da ideia de exibição gratuita de um grande truque.
Ao contrário do que muito é falado sobre técnicas circenses, como técnicas irremediavelmente virtuosas, que contém muito mais do que o necessário para adquirir formas que levantem questões sobre a contemporaneidade e para a contemporaneidade, o Grupo Fuzuê conseguiu descobrir um modo de operar que vai exatamente na contramão disso através da admissão da sua técnica. Na exibição de fato dela e do que ela é. Como técnica circense que se exibe como técnica circense na sua construção. Não se prendendo a ela. Mas encarando a técnica como um modo de jogar e como um modo de compor na cena. Despida de qualquer virtuosismo. Construindo e reconstruindo, naquele lugar de fazer, aquilo que o circo que eles fazem contém. Exatamente como colocar à vista aquilo que parece estar exaurido ao redor. E compor com isso. Nesse esgarçar da técnica com ela e para além dela através dela. Não na execução de uma pegada ou de um passo, mas na construção da obra, na construção dos corpos e da espacialidade que se faz presente no momento em que a obra acontece. Na investigação contínua. Nas descobertas e nas necessidades de descobrir. No hibridismo. Na construção das formas, das texturas, do próprio ato de compor e de estar ali: compondo naquele momento, naquele tempo-espaço. Independente de ser ou não um espetáculo marcado e ensaiado. Porque é um espetáculo que se exibe com a prontidão de algo que nunca está pronto e que está sempre na construção da necessidade em ser feito.
Como um penetrável de Hélio Oiticica, que está ali para existir
na necessidade de entrar naquele espaço. Como um bicho de Lygia Clark, que
está ali para existir na necessidade de manipulação daquele objeto. Ou mesmo
como um Parangolé, também de Helio Oiticica, que está ali para existir na
necessidade de vestir aquela capa e dançar.
Palafita é um objeto para ser suspenso. E está ali para existir na necessidade de também poder ser aquilo que lhe contém. Da mesma forma que uma obra de Sérvulo Esmeraldo pode ser um objeto, uma escultura ou algo de ferro, Palafita pode, sim, ser um espetáculo, uma performatividade ou algo de circo.
Palafita pode também ser um poema concreto para ser lido e participado na
sua construção e na sua dança.
Palafita é um objeto para ser suspenso. E está ali para existir na necessidade de também poder ser aquilo que lhe contém. Da mesma forma que uma obra de Sérvulo Esmeraldo pode ser um objeto, uma escultura ou algo de ferro, Palafita pode, sim, ser um espetáculo, uma performatividade ou algo de circo.