domingo, 18 de maio de 2014

Reprodução como estratégia de envolvimento ou de questionamento ou de quê?


Imagine uma grande empresa. Imagine uma grande empresa de entretenimento. E se imagine como um cliente desta empresa. Agora imagine que a tal empresa tenha vendido a você gato por lebre. Exatamente: você quis comprar lebre, eles te venderam lebre e, aí, ao abrir a caixa, tinha lá um gato. Isso mesmo: um gato. Mas isso é apenas um símile. A situação, na real, é a seguinte: 1) você queria assistir a um espetáculo de teatro contemporâneo e foi parar num espetáculo de entretenimento ou 2) você queria assistir a um espetáculo de entretenimento e foi parar num espetáculo de teatro contemporâneo.

E agora? Será que a empresa irá falir por conta do seu público insatisfeito? E que empresa é essa que, ao tentar se relacionar com dois públicos diferentes, é capaz de deixar os dois insatisfeitos? E como essa empresa pode, ainda, ter deixado satisfeitas pessoas de ambos os públicos sem modificar nada em seu produto? Porque, sim: existem pessoas que, apesar de tudo, saem satisfeitas. Quem seriam elas?

Essa é uma surpresa que abriga a obra Price world ou Sociedade a preço de banana, do EmFoco Grupo de Teatro, que tem como encenador Eduardo Bruno, como tutor do projeto o também encenador Marcos Bulhões e, como participantes propositores, os atores-performers Dyhego Martins, Gabriel Matos, Georgia Dielle, Lyvia Marianne, Marcelle Louzada e Thales Luz, além da participação em vídeo de Marie Auip. E como todos devem saber, surpresa pode ser algo muito bom para quem gosta de consumir.

A peça se passa dentro de um ônibus. O ponto de partida é o Porto Iracema das Artes, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, onde o grupo residiu durante alguns meses do ano de 2014 ao ter sido contemplado pelo edital de pesquisa teatral do Porto. Depois de entrar no local da encenação, partimos, então, numa rota pela cidade de Fortaleza.

O desabrigo que podemos sentir em relação a termos comprado gato por lebre é uma das maneiras que o trabalho tem de chegar ao público. Porque as situações constrangedoras que surgem ao longo do acontecimento podem nos colocar em situações de enfrentamento àquilo que deveria estar satisfazendo o nosso desejo. Isso não só no âmbito de quem quer ver entretenimento, mas também no âmbito de consumidor de arte contemporânea. Afinal, ninguém parece estar livre da captura do consumo. Nem mesmo os artistas contemporâneos e o seu público... Ou será que os artistas contemporâneos e o seu público estão livres?... Quem está livre do consumo?...

Por outro lado, a composição também pode agradar. E essa é a maneira mais forte que o trabalho parece ter de chegar: tanto aos consumidores de entretenimento que entram no jogo de reprodutibilidade de máximas do consumo que são jogadas pelos proponentes da cena de modo, muitas vezes, exacerbado; como também pode agradar aos consumidores de arte contemporânea surpreendidos pelo seu gostar de algo que entretenha (mesmo sem questionar o que os faz gostar tanto daquilo) – porque, afinal, ninguém parece estar livre da captura do consumo.

E nesse jogo entre agradar ou desagradar, entre reproduzir ou questionar, onde fica o posicionamento da obra?

O consumo afirma, no formato em que ele acontece, o mesmo que Immanuel Kant afirma na sua filosofia ao fazer relações intrínsecas entre o julgamento e o gosto. Porque sim, a grande arma do consumo é agradar para vender cada vez mais. Mas, se tratando de teatro contemporâneo e fugindo da obrigação imposta por este modelo, Price world ou Sociedade a preço de banana, mesmo que trate de consumo e nos leve, através da reprodutibilidade, a entrar na necessidade do divertimento e no modo de julgar a partir do gostar ou do não gostar, se trata de uma peça de teatro contemporâneo. 

Sendo este teatro um instrumento da arte contemporânea, cabe ao espetáculo que ele seja questionado sobre o seu modo de ser produzido e de reproduzir. Sendo assim: será que, ao encenar tantas vezes as máximas do consumo e ao brincar com o envolvimento do público diante da obra, algo está sendo questionando na obra Price world do EmFoco Grupo de Teatro? Quais seriam essas questões? Será que a reprodução já questiona por si só? Ou apenas gera identificação sem criticidade? Ou apenas gera identificação e vontade de cair no playground ou sair dele direto para um lugar bem mais confortável?

Nesta jornada, onde podemos muitas vezes esquecer onde estamos, poucos momentos parecem ser dispositivos para questionarmos o que estamos vivendo e o que estamos usufruindo ou o que está nos incomodando profundamente naquele tempo-espaço móvel. Esses momentos são marcados pelas pouquíssimas pontuais relações que são estabelecidas entre o dentro e o fora do ônibus, entre a cidade de Fortaleza e nós que estamos participando daquela peça bem naquela hora. Relações que podem ser importantíssimas, mas que parecem ter sido pouco exploradas. Ou mesmo parecem ter sido exploradas de maneira irresponsável, só reafirmando o divertimento ou a indignação que podem surgir diante dessa reprodução que refaz e que acaba se tornando também um verdadeiro modelo de operação capitalista.

No final das contas, a peça realmente pode terminar por agradar ou desagradar. Apenas. Gerar ódio ou divertimento. Através do desleixo e da falta de cuidado com o público ou através da fanfarra. Tudo dependendo de quem está lá participando. Todos estão sujeitos a saírem felizes ou frustrados. Como em qualquer restaurante. E ambas as relações são diagnosticadas através do modo que a peça é construída: o de repetir e repetir e repetir o que já acontece. Gerando aquela satisfação de ter comprado um Cartier com ponteiros de ouro e números de brilhantes ou aquele aborrecimento de ter sido acordado por uma ligação de telemarketing num domingo pela manhã.

No entanto, como consumidor de arte contemporânea, podendo estar apenas desgostando de tudo e estar julgando a obra por tudo aquilo que me desagradou – afinal, ninguém parece estar livre da captura do consumo , eu acredito que a importância de Price world está no fato de podermos questioná-la enquanto obra ou consumo. E nós podemos, sim, questioná-la enquanto entretenimento ou arte contemporânea. Entretenimento que agrada ou desagrada e arte contemporânea que é feita a partir da reprodução da contemporaneidade ou que é feita para o homem contemporâneo questionar o que ele anda vivendo e aceitando no mundo.

E também porque Price world permite que eu questione a mim mesmo como público contemporâneo a possibilidade de, no fundo, eu ser como qualquer outro público clássico que está apenas desagradado do que viu e acabou realmente não gostando.

E é isso que me agrada em Price world.

E também, o que me agrada como consumidor não só de arte contemporânea, mas de entretenimento, é o fato de que em Price world se pode beber muito, fumar muito, dançar muito e rir muito dentro de um ônibus. Muito. Apesar de ele ser um ônibus. Mesmo que alguém ao seu lado odeie tudo isso.

E diante daquilo que soa feito de maneira irresponsável, como consumidor de arte contemporânea envolvido pelo acontecimento, o meu verdadeiro desejo é que tudo aquilo que existe em Price world seja quebrado. Que as putas se revoltem e queimem Price world. Que os mendigos joguem pedras em Price world. E que os consumidores de Price world saiam de Price world o mais rápido possível. E que seja para acabar com Price world e não para colocar Price world na Justiça como se coloca qualquer loja, como eles querem que nós coloquemos. Não. A Justiça também é vendida. Eu desejo é que seja destruída toda e qualquer Price world. Porque, para que Price world pudesse ser destruída, teria que ser gerado desconforto suficiente para isso. E a destruição daquilo que é câncer no mundo contemporâneo pode ser uma grande modificação. E eu fico muito feliz que eu seja uma das pessoas a odiar Price world

Se Price world vem como uma maneira de tentar fazer o mundo diferente, talvez uma saída seja o de envolver por lados ruins até provocar os limites. Então Price world poderia se assumir como uma peça ainda mais arrogante, invasiva, pretensiosa e cheia de empáfia. Sendo ela uma peça para ser odiada como proposta.

No entanto, Price world não é tudo. É apenas uma peça de teatro.

Mas será que uma peça de teatro é apenas uma peça de teatro? Não seria uma visão de mundo? Ou seria o quê?

Ao trabalhar com o envolvimento, Price world pode, sim, estar sujeita a destruição. E assim podemos, como público, querer destruir a representação daquilo que nos atinge. Seja isso ético ou não. Seja isso responsável ou não. Porque, diante do que parece ser irresponsável, atitudes irresponsáveis também podem surgir como resposta. 

E é bom que Price world saiba lidar com o risco de desabamento. E é bom questionar os lados bons e ruins – e também todos os outros lados que não recebem os adjetivos bom e ruim – do fato de ter comprado gato por lebre.

* * * * *

Por outro lado, a obra de dança Sagração ao fast food, do artista independente Felipe Damasceno, que está sendo realizada há mais ou menos três anos, propõe em seu título, além de uma referência à obra Sagração à primavera de Vaslav Nijinsky, também uma proposição de exaltação a um modo de fazer capitalista: o da comida rápida.

Então Felipe está nu, de fácil acesso, mesmo num palco italiano. Tudo muito rápido. Emergencial. E não há nada ali, além dele e além da sua técnica, que eleve o trabalho a qualidade de um grande espetáculo ou que dê ideia de que aquilo é muito distante da realidade. 

É um trabalho simples, feito de ossos e músculos e lembranças. Apenas. Daquilo que reproduzimos sem parar e que, muitas vezes, nem questionamos. Mas Felipe faz isso sabendo que a partir daquele momento tudo aquilo poderá e até mesmo deverá ser questionado.

A movimentação, por vezes, parece bastante sintética e robotizada apesar de haver bastante suor. Felipe vai dançando uma composição de gestos usuais e de fácil acesso e reprodução que a mídia nos joga todos os dias. E que, a cada dia que passa, são cada vez mais naturalizados.

E assim ele dança o seu trabalho, utilizando também a reprodução pura e simples como estratégia dramatúrgica. No entanto, sem trabalhar o envolvimento. Se aproveitando inclusive do conceito de fast food como uma arma reversa ao capitalismo. O nome do trabalho indica uma coisa e nós vemos o simples. Isso vem desde o início. Desde antes do trabalho. E quando nós o vamos assistir, vem sendo retirado de nós aquele sabor da comida deliciosa. Ela é servida crua. E se torna mal passado aquele hambúrguer que parecia tão delicioso. 

Mas como isso é possível? Não só através de alguns mecanismos muito simples que são utilizados como forma de não nos envolver e de questionarmos o tempo todo aquilo que nós vemos, mas também através da lembrança que Felipe Damasceno propõe no momento em que a obra está começando a se tornar familiar demais pra nós, no momento em que pensamos que não há mais nada a ser feito: ele se mostra humano e nós, também como humanos, somos lembrados disso: de que somos humanos. E atrás de tudo aquilo que é a sociedade de consumo, tem gente. E na frente de tudo aquilo que é a sociedade de consumo, também tem gente. E acerca de tudo aquilo que é a sociedade de consumo, tem gente também do mesmo jeito.

E o emergencial do fast food não é mais o de uma fome que precisa ser saciada agora porque daqui a pouco eu tenho que trabalhar ou porque eu quero mesmo muito comer alguma comida gostosa e funcional. É porque é emergencial que a gente saiba que a gente é humano e não mercadorias ou armas do consumo.

E essa gente somos todos nós. Os envolvidos. É assim que nós estranhamos essa nossa condição e saímos de lá com vontade de mudar tudo.

É importante que não sejamos hambúrgueres ou bananas vendidas em sacolas de plástico.

(Foto: Tayana Tavares)

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