quinta-feira, 17 de julho de 2014

O que pode estar contido num objeto para ser suspenso

É como se uma palavra me pedisse para ser citada. Mas ela pode soar inadequada. Ela pode soar perigosa. Porque ela pode ganhar mais de um significado. E isso pode ser bom. Mas também pode ser ruim. Porque essa palavra poderia, de repente, ganhar um significado simplório. E isso eu não quero. De jeito nenhum. Porque não seria justo. Então, se eu não explicar bem direitinho o que eu quero dizer ao usar essa palavra, ela pode ficar por demais em aberto. E isso pode ser bom. Mas também pode ser ruim. Esse é o perigo desta palavra. Como, então, é possível citá-la? Como é possível fazê-la? Como construir o seu significado? É preciso minúcia. É preciso, talvez, saber de alguns outros significados da mesma palavra. E é preciso escolher o caminho de construção desse significado a ser dito, afinal. Um caminho. Não necessariamente uma chegada pré-estabelecida. Mas um caminho, pelo menos. As primeiras decisões. Os primeiros pontos de partida. Porque tudo depende da forma como essa palavra será composta. Muito mais que uma palavra explicada. Mas uma palavra exercida. Talvez seja preciso admitir o meu processo de chegada nesta palavra para que ela não atraia muitos riscos a ela. Para que assim, depois, eu possa explanar-me nela e adquirir outros caminhos que não se fechem num beco sem saída. Para que todos os riscos não fiquem só em mim, mas sejam divididos abertamente com quem quiser participar deste texto. Para que eu possa adquirir outras qualidades de arriscar-me. Para que, então, haja propriedade para falar sobre aquilo que está no topo. No alto.

O espetáculo Palafita, do Grupo Fuzuê, de autoria de Edmar Cândido e Eric Vinícius e interpretado por eles dois, parece admitir os seus riscos. Então, para escrever sobre ele, é preciso que eu aprenda com ele algo sobre a sua composição. Para que eu também possa compor esse texto. Que é também um estudo. E se faz num processo de busca.

A palavra que me pede para ser citada é suspensão. Seria difícil que eu escrevesse sem usá-la, quando, na verdade, este trabalho me parece um estudo de suspensões. No entanto, é muito difícil falar suspensão porque, quando essa palavra me vem, eu não quero falar de suspensão, mas eu quero dizê-la enquanto processo de descoberta. Eu quero encontrar nesta palavra já batida uma outra que dissesse o que é possível enxergar nesse estudo.

Suspensão poderia trazer ideia de êxtase, de perplexidade, de pausa, de hesitação, talvez até de incerteza. Talvez até de incompletude, quem sabe. Mas não. Eu quero falar de suspensão me referindo apenas como algo que não toca o chão. Dessa forma: limpa e seca. Algo não toca o chão.

Daí, para falar de algo não toca o chão, eu preciso falar como é esse não tocar o chão. Chegou o momento de admitir os pesos. Então, eu tenho como sugestão a imagem de uma palafita. Logo assim: dada a mim como primeira imagem, por ser usada como o título do espetáculo. Palafita. Uma palafita. Pesada, mas na sua medida de peso ideal. De madeira. Com suas pernas de madeira. Que tem as suas forças. Mas que tem também as devidas fragilidades de uma palafita.

É importante dizer que não é a suspensão de uma bailarina clássica. É a suspensão de uma palafita. Uma palafita sobre um rio. Com estacas de madeira que a sustentam, que a suspendem. Estacas que são parte dela enquanto palafita. E uma palafita é aquilo que ela é. Com o seu devido peso. Uma construção que admite, na sua feitura, o seu processo. E não engana a ninguém. Ao contrário de uma bailarina clássica, que apesar de também ter pernas que, de certa forma, a sustentam, está muito mais sustentada numa técnica que esconde o processo e exibe apenas o produto final. Digo: uma bailarina clássica, e não uma bailarina com a técnica clássica; mas uma bailarina clássica: que está construída enquanto bailarina não apenas na técnica, mas também nos modos de fazer do balé clássico, muito ligados à ideia de ilusionismo e ainda com bastantes influências do romantismo.

A palafita, ao contrário da bailarina clássica, exibe, na sua forma, o seu processo de feitura. Uma palafita tem estacas que a sustentam e que estão ali, naquela obra, admitindo que são estacas que a sustentam. De madeira. Mesmo que uma palafita seja um produto final, algo nela diz que aquela construção ainda é processo. Porque ela exibe o seu processo. Sendo ainda um processo, apesar de já ser um produto final.

Como num estudo que parte da ideia de suspensão, assim, limpa e seca, o espetáculo Palafita se constrói ao longo de seus pouquíssimos minutos como se constrói uma palafita. Uma palafita que, exibindo na sua construção as suas estacas, exibe também na sua forma o seu conteúdo. E aqui tem-se outra palavra perigosa: conteúdo.

É preciso, para falar de conteúdo, admitir que os significados da palavra conteúdo são mais de um. Então, é preciso eliminar, para a construção desse texto, a ideia de conteúdo como assunto. E é preciso observar conteúdo como uma palavra relativa aquilo que contém. Dentro, acerca. Enquanto objeto ou produto. Enquanto matéria. Como aquilo que está contido.

E assim, como uma palafita que contém estacas e que exibe na sua forma aquilo que ela contém, o espetáculo Palafita também exibe o seu conteúdo na sua forma. De maneira aberta, sem tentativas de esconder. E o mesmo aconteceu aqui, agora, neste texto: ao falar da palavra conteúdo como uma palavra que é diferente de assunto. Mas como uma palavra que pode dizer, de maneira direta, que determinado assunto está contido em determinada forma. Dando a devida importância da palavra conteúdo. Como uma palavra que pode falar sobre aquilo que está contido em algo. É possível, como maneira de exemplificar, que se observe esta imagem: está contida na minha cabeça algumas ideias. E essas ideias podem ser o conteúdo da minha cabeça. Mas, por serem um conteúdo, elas não são necessariamente um assunto. Elas são algo. Palpável.

E, da mesma forma que uma palafita não precisa ter um assunto, o espetáculo Palafita também não. Ele pode ser aquilo que ele é. A exibição do seu processo. E a exibição da sua feitura. Como num poema concretista.

Se uma bailarina que tem a técnica clássica, mas que não segue os modos de fazer clássicos, decide trabalhar com a sua construção de corpo como algo a ser contido num produto, aquilo não necessariamente é um assunto. Mas está lá, contido na sua forma, a admissão do seu conteúdo.

E o espetáculo Palafita, portanto, é assim: um conteúdo de suspensões. Com admissões de risco. Com admissões de peso. E com admissões daquilo que ele contém. Com admissões sobre aquilo que ele contém.

Os materiais utilizados são aquilo que eles são. Os corpos são aquilo que eles são. E eles agem da forma como eles agem. No espaço que existe ali e que ali é também admitido. E assim é construído ali, naquele espaço, durante aquele determinado tempo, um trabalho forte. De músculos. De carne e de ossos. De olhares. De respirações. Onde não são levantadas questões como perguntas, mas como exibição de materiais. Materiais que expõem forças e fraquezas. E que, por si só, são o bastante para que se racionalize no corpo questões que não contém assuntos, mas que contém sensações e desejos.

São construções. São coisas. São suor de verdade. São pele.

Não caberia na feitura deste trabalho a exibição de grandes truques como forma de iludir um público com a grande força dos intérpretes, porque as suas opções de composição são outras. Não tem a ver com iludir. Não tem a ver com ludibriar. Tem a ver com assumir. Tem a ver com gritar o que acontece. Com descobrir e levantar essas descobertas. Às vezes mínimas. Às vezes grandes. Mas nunca geradas ou movidas a partir da ideia de exibição gratuita de um grande truque.

Ao contrário do que muito é falado sobre técnicas circenses, como técnicas irremediavelmente virtuosas, que contém muito mais do que o necessário para adquirir formas que levantem questões sobre a contemporaneidade e para a contemporaneidade, o Grupo Fuzuê conseguiu descobrir um modo de operar que vai exatamente na contramão disso através da admissão da sua técnica. Na exibição de fato dela e do que ela é. Como técnica circense que se exibe como técnica circense na sua construção. Não se prendendo a ela. Mas encarando a técnica como um modo de jogar e como um modo de compor na cena. Despida de qualquer virtuosismo. Construindo e reconstruindo, naquele lugar de fazer, aquilo que o circo que eles fazem contém. Exatamente como colocar à vista aquilo que parece estar exaurido ao redor. E compor com isso. Nesse esgarçar da técnica com ela e para além dela através dela. Não na execução de uma pegada ou de um passo, mas na construção da obra, na construção dos corpos e da espacialidade que se faz presente no momento em que a obra acontece. Na investigação contínua. Nas descobertas e nas necessidades de descobrir. No hibridismo. Na construção das formas, das texturas, do próprio ato de compor e de estar ali: compondo naquele momento, naquele tempo-espaço. Independente de ser ou não um espetáculo marcado e ensaiado. Porque é um espetáculo que se exibe com a prontidão de algo que nunca está pronto e que está sempre na construção da necessidade em ser feito.

Como um penetrável de Hélio Oiticica, que está ali para existir na necessidade de entrar naquele espaço. Como um bicho de Lygia Clark, que está ali para existir na necessidade de manipulação daquele objeto. Ou mesmo como um Parangolé, também de Helio Oiticica, que está ali para existir na necessidade de vestir aquela capa e dançar.

Palafita é um objeto para ser suspenso. E está ali para existir na necessidade de também poder ser aquilo que lhe contém. Da mesma forma que uma obra de Sérvulo Esmeraldo pode ser um objeto, uma escultura ou algo de ferro, Palafita pode, sim, ser um espetáculo, uma performatividade ou algo de circo.

Palafita pode também ser um poema concreto para ser lido e participado na sua construção e na sua dança.


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